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  Anotações sobre a Teologia da Libertação - 2007
Carta a um amigo
 
 

Hoje, é realmente o dia para fazer anotações sobre a Teologia da Libertação, portanto sobre a identidade latino-americana. Afinal, 12 de outubro de 1592 é data de conquista de Cristóvão Colombo em terras latino-americanas, e, com isso, também brasileiras. Mas, este também é a data de Nossa Senhora Aparecida, Maria negra, devotada no Brasil. As duas datas nos indicam dilemas de nossa identidade: conquistados, mas também resistentes à conquista. Afinal, Nossa Senhora Aparecida provém do fundo das águas do Rio Paraíba da Sul, brota, pois, das histórias brasileiras, das histórias dos negros e das negras escravas. Nossa esperança, no fundo é, pois, africana. E se lermos Nossa Senhora Aparecida nas perspectivas de Nossa Senhora de Guadalupe (México) veremos marcas índias nas cores negras. Pelo visto, nossa identidade ainda não está concluída. Estamos em meio aos processos históricos de poder dizer quem, a rigor, somos.

Neste sentido, Teologia da Libertação não só é um encontro com as raízes sociais no cristianismo, mas é também um movimento cultural de encontro com nossas raízes passadas e futuras. Por um lado, um movimento como a Teologia da Libertação é um evento histórico determinado, marcado para surgir e sumir, mas também está configurado para ser parte de nós. É difícil dizer o que é parte de nós, se é o obelisco italiano no Parque do Ibirapuera, aqui em São Paulo, ou se são os movimentos de música popular, negra e nordestina nas insondáveis periferias paulistanas. O obelisco como que nos chama para a Europa, a viver de costas para a América Latina, a buscar a saída pelo aeroporto. Afinal, neste ano de 2007, a maior crise para a classe média paulistana justamente foi a crise do aeroporto, porque é por ele que se acha a saída, a saída de São Paulo, e, em especial, a saída do Brasil para a Europa. Pois, afinal, aqui só se vive provisoriamente, até que se possa voltar à Europa ou aprofundar-se na cultura de Miami. Aqui não se é, só se é na perspectiva do aeroporto! Na hora que os aeroportos entram em crise, os ricos daqui não suportam o aparente sufoco ao qual são submetidos. Precisam da certeza de saída, de aeroporto. Sim, este nosso país e povo são complexos. Sua teologia é complexa.


1 – É o fim da Teologia da Libertação?!

Sua morte está anunciada desde a queda do muro de Berlim, em 1989. Desde então já não faria sentido, porque suas teorias teriam sido marxista, e teriam sido superadas pela queda do muro.

Estive na DDR, na assim chamada Alemanha comunista (República Democrática Alemã), em 1987, no 2º semestre. Passei por todo país. Falei com pessoas de todo tipo, gente do governo de então, e, em especial, estive com comunidades cristãs.

As críticas que me eram feitas provinham de dois lados. As pessoas das igrejas não queriam saber de Teologia da Libertação na América Latina, porque elas queriam ver-se livres do estado. Numa dessas noites, em Leipzig, estive em um prédio abandonado, em algum quarto completamente fechado e vedado, em uma reunião histórica para mim. Era agosto de 1987. Juntos estavam jovens da igreja, jovens do partido comunista da cidade, e dissidentes russos do então partido comunista oficial da União Soviética. Naquela peça escura, passamos a noite inteira em debate e em troca de opinião. Aquele foi, para mim, um encontro impactante, algo de contornos apocalípticos. Era a DDR daqueles tempos! A tese dos visitantes de Moscou era que não havia reais forças democráticas que pudessem facilitar uma transição verdadeiramente democrática na sociedade russa e nas demais repúblicas do leste. Concluía-se o mesmo para a DDR. Na oportunidade, em nada, se vislumbrava as igrejas na DDR em seu importante papel na transição democrática. Ela não merecia ser analisada em suas funções, nem mesmo por quem dela participava. - Na mesma visita à DDR, tive a chance de me reunir, também de modo informal e de maneira meio ‘clandestina’, com dirigentes do partido comunista da DDR. Um dos participantes era o ideólogo e chefe do partido em Dresden, gente de dentro do poder, de sua escala mais alta. Pois, nos diálogos que tivemos no apartamento de uma senhora de bastante idade que merecia confiança de comunistas e de cristãos, não houve acordo nenhum. Para a liderança comunista, as igrejas não levavam chance alguma na constituição e no tecido social, nem na DDR e nem na América Latina. Segundo “eles”, crer em Deus era atrapalhar a vida, era idêntico a confundir-se sobre a realidade própria da existência. Enfim, separamo-nos em profundo desacordo com a chefia ideológica do partido na DDR. – Sabemos dos acontecimentos do segundo semestre de 1989, e do relevante papel que igrejas, pastoras e pastores e comunidades tiveram no encaminhamento dos destinos da DDR. Daí tomo a liberdade de deduzir que igrejas têm, às vezes, grande relevância nos encaminhamentos da vida e nos próprios processos sociais, mais importantes que tendemos a considerar-nos. É bom termos consciência disso. O que se faz nas igrejas é de grande relevância para os processos sociais. Por isso, justamente a pergunta pela Teologia da Libertação tem a importância que tem.

De todo modo, há que considerar que a Teologia da Libertação não é propriamente parte dos caminhos ocidentais, das culturas euro-centradas. Ela é também isso. É filha do ocidente. Basta ler Gustavo Gutiérrez e suas intermináveis citações da teologia da cultura européia, para saber que a Teologia da Libertação mantém profundos vínculos com a cultura européia. Mas, isso não é tudo. Esta teologia libertária está ancorada nas raízes latino-americanas, em suas culturas e suas nações. Quando cristãos desvendaram para si o sentido da Americana Latina, quando o fizeram na própria América Latina, acabaram tendo que fazê-lo em língua estranha, mediante citações infindáveis da bibliografia européia. Para começar a comprometer-se com a América Latina as igrejas daqui tiveram que recorrer a seu berço, à Europa, para poder dizer de seu comprometimento com a América Latina. Este é o sentido cultural do livro de Gustavo Gutiérrez sobre a Teologia da Libertação. Afinal, naqueles anos dos sessenta, Gustavo Gutiérrez era assessor de jovens acadêmicos, era assessor teológico do movimento estudantil universitário. E para dizer em termos universitários a latino-americanos que os pobres eram o tema de nosso continente, teve que ‘expressá-lo’, por assim dizer, em ‘francês’, para que as pessoas intelectualizadas daqui entendessem que o assunto era sério. Isso que estou dizendo é uma profunda contradição, mas é esta a contradição que vivemos: nosso pensar sendo daqui é aqui estrangeiro. Se ele (o pensar) fosse daqui teria que amar portugueses, índios e negros. E isso é bonito ao se estudar messianismo. samba ou culinária brasileira, mas não para pensar. Afinal, ‘em nós’ o ato de pensar faz-se um ato estrangeiro. A Teologia da Libertação tenta alocar nossa ética em meio a nossos povos mediante o uso da linguagem estrangeira. É, ao menos, o que podemos dizer para os começos da Teologia da Libertação. A partir do final dos anos setenta, novos ares se impõem, os do verdadeiramente extraordinário livro de Gustavo Gutiérrez A força histórica dos pobres, e os dos decisivos escritos de Leonardo Boff Igreja – Carisma e Poder. Estes livros já respiram os ares locais, cada vez mais e com maior intensidade.

Portanto, a Teologia da Libertação se encontra na tensão entre feijão e sonho. (Este é o título de um romance maravilhoso, escrito por um dos membros da família presbiteriana dos Lessa.) Por um lado, a Teologia da Libertação acertou o “feijão”, a vida real e cotidiana dos pobres que, a cada dia, têm seu gosto principal pelo feijão, aquilo que alimenta para trabalhar e viver. Se falta feijão, falta tudo! E, por outro lado, estamos no sonho, na libertação, na saída desta miséria coletiva das grandes maiorias latino-americanas. Somos gente que busca a companhia de Dom Manoel, aquele rei português que no século 15 desapareceu na luta dos portugueses contra os mouros muçulmanos no norte da África e por cuja volta triunfal e messiânica espera toda nossa cultura. Eis, nosso sonho! Sonhadores foram nossos lutadores destemidos, como Antonio Conselheiro, como José Maria (no Contestado catarinense), como Jacobina Maurer dos ‘muckers’ do sul do Brasil. Todos estes e seus grupos são andarilhos pelo mundo novo, como o é nosso carnaval e como o é nossa política, quando ela se torna comovedora. Não votamos em candidatos partidários, mas, em eleições, tendemos ir em busca da era messiânica. Estes não são os sonhos de nossas elites. Seus sonhos são os aeroportos! Os sonhos populares estão em Canudos.

Eis nosso desencontro nacional. E, aí, a Teologia da Libertação tomou partido e optou. Nos anos sessenta e setenta, esta opção era mais fácil de fazer que hoje. Naqueles anos, a América Latina era possuída por militares que destituíam os governos eleitos por golpes de estado. Fecharam os canais de expressão para todos, para os pobres que jamais tiveram expressão política decisiva em nosso continente, mas estranhamente também fecharam os canais de expressão para os filhos dos setores mais abastados da sociedade. Quem fazia opinião, estudantes e jornalistas, foram cerceados, presos e assassinados, num país latino-americano mais que no outro, mas foram eliminados em massa no Chile e na Argentina. Os militares voltaram-se, pois, contra seus próprios aliados normais, os filhos de gente rica e/ou tradicional. Mas, como militares perderam esta chance de conjunção social. Por isso, a “opção preferencial pelos pobres” tornou-se tão facilmente inteligível. Não havia saída que não fosse pelas sacristias, pelas igrejas. Ao tentarem impor a repressão, os militares ajudaram a constituir um adversário ainda mais poderoso, o que se forjou entre intelectuais e pobres, através das igrejas. Lógico, as igrejas queriam este novo acordo. Já não queriam um acordo com as elites, depois do Vaticano II e dentro de seu clima. Queriam um acordo com o povo latino-americano, com os pobres, em Medellín e depois desta Conferência, até hoje, como se vê nos documentos de Aparecida, em maio do presente ano. O episcopado católico ainda não encerrou o ciclo de seu enlace com os setores pobres das sociedades latino-americanas. Portanto, a Teologia da Libertação continua em pleno vigor, em renovação, em novas versões, apesar de tudo, apesar das recentes perseguições vaticanas contra Juan Sobrino. Ora, a opção pelos pobres já é parte da identidade católica, mas também é parte de sua necessidade, pois sem amor aos pobres estes já não terão amor pela igreja católica. É que hoje se apresentam novas opções que buscam e necessitam da adesão dos pobres, dentre movimentos pentecostais. Por mais que a opção pelos pobres tiver sido idéia política nos anos sessenta (e ter-se-ia que verificar que a opção tem raízes só em convicções políticas), em todo caso, no presente momento, não optar pelos pobres na América Latina seria tolice, pois até a mídia televisiva se vê obrigada a isso. (A Rede Globo tem jornalistas que elaboram programas a partir de pobres na América Latina e na África.)

Enfim, estamos longe do fim da Teologia da Libertação.


2 – Os meio ricos e os pobres – um desafio na Teologia da Libertação

Há um novo fenômeno social que vai complicando a Teologia da Libertação. Este fator não era tão decisivo nos anos sessenta e setenta, pelo contrário, naquelas décadas ele se formatava de outra maneira.

O problema são os setores médios. Acima já ressaltei que nos anos de berço da Teologia da Libertação, nos sessenta e nos setenta do século 20, estes setores médios e inclusive ricos também tiveram negados seus direitos políticos, Latino América afora. Os direitos junto aos pobres se tornaram hóspedes dos direitos humanos. (Lembro aqui uma publicação dos direitos humanos como direitos dos pobres pela Arquidiocese de São Paulo.) A situação, hoje, não é mais a mesma. Em dois aspectos, por exemplo, surgiram mudanças expressivas: por um lado, as sociedades latino-americanas deixaram de ter regimes militares. Aliás, os militares não têm bom conceito aqui no Brasil, e nem relevância política. Poucas vezes em nossa história nossa sociedade foi tão hegemonicamente civil. Temos crises - sim, significativas crises - em nossas representações políticas. No Brasil, cassamos um presidente eleito pelo voto direto. E, tudo isso, foi e é obra da sociedade civil. Por conseguinte, já nem se pensa e nem se sonha que seria necessário ir à igreja ou querer abrigar-se nela para poder ser politicamente ativo. Nos anos sessenta e setenta, esta era uma realidade de muitos agentes de pastoral e de colaboradores nas igrejas: não havia outro espaço na sociedade. Hoje, isso não é necessário. É verdade, no contexto das igrejas continua a haver muito esforço político, mas não porque não houvesse outro espaço. Muito pelo contrário. Os partidos e os sindicatos oferecem plenas condições de nos expressarmos através deles. Não há, pois, necessidade de recorrer às igrejas. Quem atua na igreja, seja como clérigo seja como leigo, assim procede porque a igreja respectiva lhe agrada, porque entende que a fé está em íntima relação com a justiça e o amor. A igreja se tornou, pois, mais igrejeira. Isso pode tender a um certo refluxo das tensões sociais como assunto religioso. A política fez-se mais leiga; não carece de igrejas e de seus espaços. - Por outro lado, e aí realmente houve profunda mudança, os setores médios da sociedade se afastam cada dia mais das intuições eclesiásticas em apoiar governos populares. Os setores médios querem a si mesmos, com muita convicção. Após as eleições presidenciais, há um ano atrás, tentei comentar o resultado eleitoral, tão favorável a Lula, na sala de aula, no último ano de graduação de um curso de teologia; os alunos eram majoritariamente adultos, profissionais de várias áreas que haviam optado pelo estudo da teologia para aprimorar sua dedicação à sua respectiva igreja. Pois, na sala de aula, comecei a comentar os resultados da eleição que deram praticamente 70% dos votos a Lula. Mas não consegui nem concluir meu comentário, pois, como eu jamais havia experimentado em minha vida, a meu comentário se opuseram vários alunos e alunas com ímpeto, em tom de protesto e indignação e até com fúria, totalmente contrários ao resultado das eleições, pois, assim diziam, “este Lula só dá dinheiro aos pobres”, e nós, classe média, temos que trabalhar, etc. e tal. Tive duas horas de gritarias na sala de aula de teologia, de protesto feroz contra o governo popular de Lula. Para mim, um susto! Não imaginava ter que ouvir tais ‘argumentos’ - aliás, gritarias - de teólogas e teólogos. Obviamente já não estamos nos anos sessenta ou setenta. Os tempos são outros.

Há que acrescentar a isso que nos países latino-americanos os governos populares se impõem, por toda parte. Não estamos em governanças militares, mas em meio aos mais populares governos que já existiram na América Latina. Parcelas significativas dos orçamentos nacionais são aplicadas para pobres a ponto de já ser significativa a melhora das condições da população. É verdade, ainda falta muito, mas também é verdade que cada qual vai tendo experiências com governantes que aderem às necessidades das maiorias empobrecidas, algo jamais visto entre nós. No Brasil, os novos valores do salário mínimo são decisivos; seu valor ainda não é suficiente, mas subimos de U$ 60 para U$ 240, em poucos anos. Além disso, entrementes 20 bilhões de reais são investidos em alimento para os mais pobres, através de entrega de dinheiro (não através de programas de alimentação!)! Este tipo de ‘devoção’ do estado aos mais pobres é um fenômeno encantador. Certamente facilita a que oremos o Pai Nosso: “o pão nosso de cada dia dá-nos, hoje”. A universalização deste pão é uma meta tangível, em nossas terras. Não podemos deixar de ler esta realidade de modo teológico, ainda que muito teólogo tenha lá suas dificuldades em avaliar positivamente por medo de que lhe poderia vir a faltar o alimento, se os pobres consumirem demais, como um desses teólogos da ignorância me dizia na sala de aula.

O testemunho em prol da Teologia da Libertação tornou-se, pois, menos óbvio, menos universal, não menos importante ou menos urgente. Pois, há mudanças para melhor na América Latina, mas isso poderia ser só um momento, uma transição. Há esperança concreta, mas e amanhã...


3 – Destruímos nosso futuro

O movimento modernista, no Brasil expresso principalmente pelas artes plásticas e pela literatura, dizia, nos anos 20 do século 20, que somos autofágicos. Penso que nisso há razão de ser. Tendemos a devorar nosso próprio futuro, nossas esperanças. Pois, há entre nós, entre os setores médios da sociedade, a suspeita de que amanhã já não poderíamos suportar viver por aqui. Arriscamos começar com novos empreendimentos, mas dificilmente os sustentamos. Ou, em outros termos, devoramos nossas esperanças, deixamo-las cair no vazio.

É que nossa história não tem continuidade, ou, ao menos, tende a não ter continuidade. Ela se esgota em fatias. Partes de nossa história são interessantes, mas outras, em seguida, são podres. É como se comesses uma laranja, e um de seus gomos estivesse estragado/pobre e outro gomo, ao lado, estivesse, maravilhosamente, doce, e assim em seqüência: um gomo bom outro podre. O que nos falta em nossa história é a continuidade. Pois, constantemente, somos reflexo da história européia e estado-unidense. Somos anexo à história de outros. Somos um vagão em trem alheio. Somos pátio dos fundos, quintal detrás de casas bonitas. No quintal, nos pátios fica jogado o que não se quer na casa. Somos mais ou menos desse jeito.

Neste pátio dos fundos, há coisa interessante, mas não decisiva. É nossa beleza e nossa tragédia. Somos lindos no futebol, mas não conseguimos sair da miséria em termos econômicos, ao menos nestes 500 anos que passaram. Mas, nesta história passada, tivemos momentos muito bonitos, muito libertadores, muito fascinantes. Mas tudo foram pedaços, parcelas, nada inteiro e contínuo. Nossos avanços não são proporcionais a nós, mas nos são inversamente proporcionais.

Este é nosso ‘destino’, é nossa sina, como dizem nossas poesias. Mas justamente esta sina é a ruína continuada. Há como encontrar uma saída destra tragédia que se chama de dependência interminável? Estes últimos 500 anos deram razão ao marxismo: não houve saída; todos fomos mantidos nos quintais, nos pátios dos fundos na ignorância e pobreza. Mas a história é aberta para o novo. O novo seria o de agora? Pois, é possível! Dentro do horizonte de minha vida diria que sim: já não haverá como recuar. Mas, não sei, prefiro também esperar para ver e, em especial, participar junto com outras pessoas de movimentos que impeçam que voltemos para trás.

Enfim, a tragédia de Sísifo chegará ao fim!?


4 – Por onde estamos, ‘carregando as pedras’?

Podem ser anotadas algumas características dos dias atuais. E elas apontam em direção à inovação da Teologia da Libertação bem como para a sua continuidade. É óbvio que, hoje, trinta anos após o livro de Gustavo Gutiérrez temos que falar deste jeito do movimento em questão, porque, depois de trinta anos todo movimento necessita de uma ou mais inovações.

4.1 – O protestantismo

O protestantismo continua minoria. Mas, a cada dia que passa, seus quadros aumentam, suas igrejas crescem, seu debate interno se qualifica. Por isso, faz-se necessário perguntar por sua presença no presente e no futuro, dentro deste quadro de formação da teologia latino-americana.

E aí me lembro da Teologia da Revolução, deste conceito marcado por Richard Shaull, nos anos cinqüenta e sessenta, em espaços protestantes. E, até hoje, este movimento não está encerrado e nem esquecido. Entrementes, conheço diversos teólogos e teólogas protestantes que recorrem ao acervo de linguagem e análise da Teologia da Revolução. A publicação De dentro do furacão, com ensaios de Richard Shaull, continua a receber bons ecos.

Os carismatismos por certo já se alastraram pelos poros das igrejas protestantes. Mas as convivências de uma teologia socialmente crítica com certo tipo de carismatismo são possíveis. Pois, este pode ser reacionário, em termos políticos, como haveria que constatar entre os republicanos norte-americanos. Mas, verdade seja dita, Jacobina Maurer, Antonio Conselheiro e, não por último, Thomas Münzer têm o carismatismo como base comum. Situaram-no dentro da história com vigor, força e luta. Por isso, não há que ser ingênuo e pensar que a teologia política tende a ser um desdobramento da teologia liberal; não, ela também é um desdobramento do vigor do Espírito, assim já o dizia o pesquisador do pentecostalismo chileno dos anos cinqüenta e sessenta (Lalive).

Não poderia encerrar um item sobre a questão protestante como tema da Teologia da Libertação sem lembrar que o livro decisivo de Leonardo Boff foi exatamente intitulado Carisma e poder. Nossos tempos, são, nas igrejas, de carismas. Pelo poder as igrejas pouco são. Carisma é tema comum, ecumênico. É o assunto das comunidades.

4.2 – As comunidades

A dificuldade principal de uma ampliação da Teologia da Libertação em meio ao protestantismo justamente reside em sua dificuldade de ser movimento de comunidades. As igrejas protestantes querem ser comunidade, sem que informalizem sua compreensão de dons. Sem dons não haverá mudança. Este é o impasse maior. Em não havendo ‘grupos-tarefa’, organização social dos dons não haverá igreja profética, nem comunidade que vai tomando iniciativas por sua conta. O mundo protestante é pastoral. Pastor ou pastora cuidam de tudo, têm que saber de tudo, senão a comunidade não se satisfaz. Na medida em que existirem comunidades dispostas a tomarem suas iniciativas autônomas na sociedade, nesta mesma medida crescerá a profecia e o movimento comunitário dentro da comunidade (veja que contradição!). Por isso, há sérios limites nas igrejas protestantes; elas têm dificuldades de lidar com a autonomia de seu povo. Seus pastores são maravilhosos, mas tendem a ser também seus túmulos.

No geral, o que são os dons? Ora, são tarefas e empreendimentos internos à comunidade. Mas dom é o amor. A rigor não são tarefas. Em especial, não são exclusivamente tarefas intra-comunitárias. São mesmo amor, ações em favor de necessitadas e necessitados.

Quanto às comunidades, nada mudou no mundo católico. Ela continua a ser uma igreja sem clero! Mas não lhe faltam comunidades, grupos e círculos. Ora, sem movimento de comunidades não há a rigor Teologia da Libertação, ao menos não depois de aproximadamente 1978. Nos inícios, a Teologia da Libertação ainda não era, em seu todo, fruto de encontros de comunidades, mas depois de seus primeiros desdobramentos ela se fixou, se agarrou, se mesclou à realidade comunitária. Assim o descreve Gustavo Gutiérrez em seu A força história dos pobres, assim o encontramos em Massas e minorias. Assim o celebram os cânticos cantados. A pergunta decisiva não é, pois, se a Teologia da Libertação continua, mas se as comunidades continuam. A televisão pode ‘substituir’ o acesso das igrejas às pessoas, mas não como isso se dá no âmbito da comunidade. Nem mesmo cânticos animados, ou palmas de entusiasmo podem efetivar entre as pessoas o que suas próprias palavras podem alcançar. É verdade, o carismatismo é participativo, mas só mais ou menos. Pois, palmas e saltos e movimentos são muito interessantes, mas na falta da palavra a consciência não cresce. Só tende a imitar. Por isso, o movimento das comunidades continua a ser o espaço de evangelização próprio, específico, decisivo.

É que a comunidade constitui espaço da ação. Se faltar ação, falta o que é propriamente típico da igreja. Os encontros de igreja carecem justamente do espaço da ação. Você vai à igreja para a ela voltar. Mas o que ela propõe que aconteça? Esta questão as igrejas não vão solucionar, porque elas não são encontros para a ação, senão reuniões que nelas mesmas se esgotam. Contudo, fé sem ação expressa morte! O que a era constantiniana fez da fé em Jesus certamente cabe em templos; mas o que Jesus quis nem mesmo necessita de templos!

Por isso os sacramentos tendem a perder a forma que têm. Tornaram-se atos sem ações; neles mesmos viraram contradição. O batismo é, sem dúvida, testemunho precioso em relação à defesa das crianças, mas sem ação deixam de ser luta por crianças e por adultos e se tornam ‘sacramento’. Mas sacramento sem ação em nada contribui na identidade cristã. Torna-se hóstia. Pão que vira hóstia tende a perder a conexão com as lutas da vida. Pois, hóstia deseja ser parte do “pão nosso de cada dia”. E este pão nosso é eminentemente social. Pressupõe lutas sociais. Ora, igrejas dificilmente vão à luta. Quem vai à luta são comunidades. São quem vai eucaristicamente ou de modo batismal à luta pelos sinais de Deus na vida. Sem comunidade – a fé em Jesus não tem saída.

Neste sentido, a Teologia da Libertação está longe de se concluir.

4.3 – A Bíblia

Pouco há de novo na academia teológica quando se trata de Bíblia. Ouço muitas frases comuns pelos corredores, provenientes das salas acadêmicas. Pois, ao lidar-se com a Bíblia a tendência continua a de torná-la ao máximo complicada. Não me parece que o estudo da teologia tenha conseguido inovar de tal forma no uso da Bíblia que o que se estuda realmente esteja a serviço das lutas do povo latino-americano. A Bíblia em estudo continua estrangeira ao solo daqui. Vem empacotada com cordas e correntes da invasão conquistadora sem haver tocado suficientemente o chão e o pó daqui.

Há exceções, é verdade. Mas, no geral, de acordo aos livros traduzidos, estuda-se aqui o que é europeu. Pior, estuda-se aqui o que até na Europa já está superado. Vale neste sentido: estamos no fundo do terreno, onde se joga o lixo da casa. Reviramos o lixo dos ‘senhores’. Estudamos a sobra. Ora, nossa bibliografia bíblica é, quase toda, ultrapassada; está defasada por anos do que na Europa se estuda, mas desejamos que a Europa continue nosso padrão.

Nem sempre é assim, mas se passares pelas faculdades de teologia me dirás certamente que no geral é assim. A Bíblia das faculdades vai longe de vir a ser Bíblia do povo sofrido latino-americano. Neste sentido, o gesto de Ataualpa, ao lançar fora a Bíblia, aos pés de Pizarro, continua a ser emblemático. Ou a Bíblia traz as lutas da vida à consciência ou ela é enfeite antiquado.

Há iniciativas - lindas iniciativas - que trazem a Bíblia ao meio da vida. Elas até são muitas. Lógico, poderiam e teriam que ser muito mais, mas alegremo-nos pelo que já temos. As igrejas por aqui suspeitam que a Bíblia não é o que por aí dela se diz; ela é mais radical em seu desejo de formatar a estas mesmas igrejas. Esta suspeita se implantou entre nós. Há que mantê-la no ar, para que instigue as igrejas, dia a dia, domingo após domingo. O evangelho, do qual as igrejas falam, tem que ser o bíblico, aliás as próprias igrejas desejam que seja assim. Cabe a cada um e a cada uma de nós reforçar esta crise, pois o bíblico pede passagem.

Ora, o que é bíblico pede por muitas palavras de muitas pessoas. Não é possível dizê-lo no singular, por um bom pregador. Um bom pregador é um bom pregador, mas lá por isso não dá passagem - intensiva - ao que é bíblico. Só o conjunto, os grupos de comunidade é que são capazes de expressar o sentido da Escritura.

O movimento bíblico brasileiro e latino-americano vem dando belos passos nesta direção. Em parte isso se deve a seu caráter leigo. Quanto mais leigo permanecer o movimento bíblico, mais desafiador será. Em meio a este povo leigo de biblistas, as mulheres vêm tendo um papel todo especial. Isso igualmente indica que a Bíblia assume contornos em novos corpos. Sem isso, a Bíblia não fala (veja 1Corintios 1!).

As igrejas carecem, por aqui, de uma vigorosa renovação bíblica. Penso que elas, em parte, estão em meio a ela.

4.4 – A questão índia

Não há teologia latino-americana que não seja índia e negra. Por isso, sua dimensão acadêmica não basta, porque a academia representa um corte, um perfil branco na sociedade e do saber. Às vezes tal perfil é parte de nossa própria história e temos que conviver com ele, porque assim fomos feitos e assim somos. O acesso à escola teológica chegou a estar negado aos descendentes de escravos. E, mesmo quando liberado, o acesso às faculdades, são poucos os descendentes de nações indígenas e de filhas e filhos dos povos negros que têm acesso à formação teológica. Temos muito a caminhar nestes caminhos. A Teologia da Libertação tal como a conhecemos desde os anos sessenta e setenta é, tão somente, um primeiro momento do despertar latino-americano. Ao delinear a contribuição indígena, Gustavo Gutiérrez certamente foi claramente insuficiente. E a contribuição negra ainda nem de longe começou a se extravasar pela Teologia da Libertação.

Ainda estamos nos começos de caminhos que havemos de trilhar, caminhos difíceis. Difíceis porque não se trata somente de uma ou de outra orientação teológica, mas de um diálogo muito mais profundo. Afinal, índias e índios, negras e negros ainda não foram ouvidos em suas experiências religiosas. E sem estas experiências religiosas não haverá Teologia da Libertação na América Latina. Estamos tão somente nos começos destes caminhos.

Estes caminhos ainda não foram conscientemente encaminhados. São tarefas que temos pela frente, em longos e tranqüilos diálogos. No nível da prática e de certa dose de ‘inconsciência’, estão funcionando há tempos. Mas, na esfera do diálogo ainda estão por serem realizados.

4.5 – Ecumenismo

Enfim, o que temos pela frente é o ecumenismo. A Teologia da Libertação não começou anti-ecumênica. É verdade. Mas também não teve inícios marcadamente ecumênicos. Nos caminhos, sua ecumenicidade cresceu. Ampliou-se e se vai tornando uma de suas marcas.

Vem-se fazendo, por aí, uma diferença marcante entre ecumenismo e macro-ecumenismo. O ecumenismo, aquele que geralmente é endossado, é o ecumenismo entre igrejas. O assim chamado macro-ecumenismo tende a ser inscrito em outros contornos. Pois, diz-se que o macro-ecumenismo teria outras premissas. Pois, sabes, formalmente falando, até se poderia manter esta diferenciação. Mas ele de pouco ajuda. Na América Latina, nem mesmo aborda as questões decisivas. Pois, é o assim chamado ‘macro-ecumenismo’ que aborda o que importa: o lugar de cosmovisões indígenas e afro-americanas em nosso horizonte teológico. E, afinal, ecumenismo entre cristãos é algo, se me permitem, de tal modo óbvio que não carece de grandes debates. Pior, este ecumenismo inter-cristão mantém de fora aquele que propriamente é o problema. Ora, cristãos e cristianismo foram, por aqui, partes da opressão, por séculos. Não basta, pois, que nos reunamos para acertar-nos, se sempre estivemos acertados, em nosso continente contra índias, índios, negras e negros. Aliás, continuamos a ter esta marca principal: cristãos são os que esquecem e ignoram seus parceiros de caminho, aqueles e aquelas que, por nós, foram lançados nas sarjetas e vão sendo perseguidos até hoje, praticantes das religiões indígenas e africanas. Nosso tema latino-americano é o do assim chamado ‘macro-ecumenismo’, por isso designo a este preferencialmente de ecumenismo.

A rigor, a fé em Jesus, nas tradições de Moisés e dos profetas, haveria que ser libertária. Haveria que ser... Pois, senão deixa de ser o que é, o que foi, o testemunho das ações de Deus em prol de um pobre camponês executado na cruz e de hebreus escravos e escravas, perseguidos pelo senhorio faraônico. Pois, justamente, esta religião formatada em contornos tão claramente de libertação, a que deu origem à Teologia da Libertação, mostrou-se nos processos históricos de nosso continente vorazmente opressora. E as religiões indígenas e africanas assumiram importantes contornos libertários e integradores. Há séculos isso vem sendo identificado desse modo. Pero Vaz de Caminha chega a desrecomendar que o imperador português envie missionários para cá, para as terras em ‘descobrimento’, porque as pessoas que aqui viviam, segundo Pero Vaz, já eram cristãs, inclusive haviam participado com cantorias na primeira missa. Pero Vaz já intuía que nada de bom se passar com os indígenas através das missões e da presença portuguesa (e espanhola). Afinal, o 16º século foi de um voraz genocídio contra índias e índios. Em todo caso, em relação a negros e índios não há que ter postura de ensino mas de aprendizagem. Não há que missionar, mas modestamente perguntar: com foi que vocês conseguiram suportar genocídio e escravidão em suas orações e com seu Deus? O respeito a negras e índios será, em nosso contexto, propriamente a Teologia da Libertação. Bem que Juan Luis Segundo já vislumbrava que Teologia da Libertação haveria quer ser libertação da teologia!

“El Diós de ellos es el oro!” Assim se dizia no Peru sobre conquistadores e sua religião. Desde Constantino é assim. Os mosteiros já o diziam, no oriente e no ocidente. Aqui os ‘mosteiros’ daqueles primeiros séculos de acomodação crista aos do império são negras e índias, negros e índios. Temo que ainda nem começamos a trabalhar este assunto, nas igrejas.

Certamente, temos mais outros assuntos pela frente. Neste meu item quatro restrinjo-me a estes cinco temas exemplares. Outros enfoques que se fazem necessários talvez poderiam ser medidos e desdobrados no horizonte daquilo que ficou refletido nos assuntos explicitados.

Desejo, Guilherme, que vocês tenham muita alegria em seus estudos. E obrigado que vocês se dedicam a coisas nossas, de nosso contexto. Permaneço à disposição.

Milton Schwantes
rua Camilo José
Vila Dom Pedro I – Alto do Ipiranga
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em 12-10-2007




M I L T O N... S C H W A N T E S
- profeta da esperança


Profeta andarilho
De tantas tribos,
De tantos caminhos,
De veias abertas
Da América Afro-Latina...
(Iria Hauenstein)

Na terça, dia 28 de fevereiro, fui visitar o amigo Milton Schwantes na UTI do Hospital Santa Catarina, em São Paulo. Aí se encontrava, já há 84 dias, rodeado de carinho de sua família (a esposa Rose, as filhas Priscila, Raquel e Débora, seu sogro Anaor e sua sogra Marina), de médicos e enfermeiras.

Cheguei bem perto e disse-lhe meu nome e que tinha vindo visitá-lo. Que trazia um monte de abraços da minha família e dos amigos e amigas de São Leopoldo. Abriu os olhos e olhou-me fixamente, lágrimas começaram a descer pela face. Começou a abrir e fechar sua mão à minha frente. Dei-lhe a minha e assim ficamos por mais de 30 minutos, ora apertando mais forte, ora mais fraco, fazendo carinho. Ainda contei-lhe que o livro “Salmos da Vida a caminho da justiça” estava pronto para impressão. Fiquei com ele até tarde da noite. Na manhã seguinte voltei logo cedo para vê-lo novamente antes de despedir-me, quando estava bem mais calmo.

Na madrugada de quinta-feira, 01 de março, pouco depois de meu retorno, sua filha telefonou informando-nos de seu falecimento. Iria e eu, junto com Martin Dreher e Marie Krahn, fomos ao velório e enterro. Despedimo-nos do grande amigo. Tarefa difícil. Consolamos e fomos consolados. Encontramos dezenas de amigos/as e conhecidos.

A encomendação e sepultamento do Professor Pastor Dr. Dr.h.c. Milton Schwantes ocorreu na manhã de 2 de março de 2012, em ato presidido pelos Pastores Roberto Baptista e Hermann Wille, com início às 10 horas, no Cemitério da Paz, na cidade de São Paulo. Grande número de pessoas, provenientes de São Paulo, Guarulhos, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro estiveram presentes, representando comunidades luteranas, católico-romanas, metodistas e presbiterianas. No culto de despedida, entremeado pela leitura do Salmo predileto do Pastor Milton, o Salmo 121, por cânticos e a leitura de Isaías 55, 8-11, manifestaram-se representantes das diferentes denominações presentes, da ecúmena, das instituições em que Milton Schwantes atuou, familiares e amigos. Em todas as falas foi destacada a personalidade do teólogo falecido, sua simplicidade, sua profundidade e radicalidade na interpretação da Bíblia, seu amor em relação às pessoas simples e sofridas, o respeito que soube granjear no mundo intelectual, a contribuição que soube dar para o entendimento entre as confissões. A exemplo de Moisés pôde perceber Deus “pelas costas”, podendo, agora, vê-lo “face a face”. A exemplo de Ezequiel engoliu o “rolo“, ruminou-o e pôde experimentar que era “doce como o mel”, transmitindo essa doçura para, depois, experimentar, como Jó, o sofrimento do justo, na certeza da ressurreição.

Durante os últimos dias e, especialmente, desde seu enterro, estamos inquietos, em desassossego, sentindo um grande vazio. Pela cabeça e pelo coração passa um filme com muitas imagens de nosso convívio, marcado por muitos encontros e entreajuda.

Filho de Delfino e Eugênia Schwantes, Milton nasceu às 8h30min, em 26/04/1946, no Hospital N.S. do Rosário, em Tapera, então município de Carazinho. A família residia na localidade de Lagoa dos Três Cantos. É o irmão mais moço de Norberto, Arlindo e Édio. Perdeu seu pai com 5 anos de idade. Em seguida, veio com sua mãe, para Nova Petrópolis e, meio ano mais tarde, a São Leopoldo.

Fez o primário no Colégio Rio Branco. A seguir, estudou no IPT-Instituto Pré-Teológico, entre 1959 e 1965. Aplicado nos estudos, destacou-se também como bom desportista.

Participou da organização do GEIPT (Grêmio Estudantil), do qual também foi presidente.  Organizou, com outros colegas, o Ratio Club, sociedade de estudantes para discutir temas gerais da vida política, filosófica e religiosa.

Em março de 1966 iniciava seus estudos na Faculdade de Teologia, concluindo-os em julho de 1970, sendo indicado para pós-graduação em Heidelberg/Alemanha. O tema de sua tese de doutorado foi “O direito dos Pobres”.

Retornou ao Brasil em agosto de 1974, sendo indicado pela IECLB como pastor em Cunha Porã/SC. Junto com os demais colegas do Distrito Uruguai, além de uma prática pastoral coerente com a causa dos pobres, engajou-se na série de publicações Cadernos do Povo. Em julho de 1978 veio a São Leopoldo, para ser professor de Antigo Testamento na Faculdade de Teologia (hoje EST).

Iria e eu conhecemos Milton no início dos anos 80. Era nosso professor. Aproximamo-nos com mais intensidade em 1984. Milton foi grande apoio nosso. Ele nos levou ao CECA-CEBI, onde viríamos a trabalhar por muitos anos. De lá em diante os contatos foram frequentes, semanais. Era professor na EST e morava na Vila Pinto/Esperança (na Fazenda São Borja), periferia de São Leopoldo. Era uma opção sua – opção pelos pobres! – não aceitando a residência oferecida aos professores na época. Era uma casa pequenina, de madeira, de onde se deslocava sempre de bicicleta, e mais tarde de motocicleta, à EST e aos demais lugares onde dava assessoria a cursos e encontros na cidade e arredores. Foi o grande apoiador da leitura popular da Bíblia. Foi um dos idealizadores, dos cursos de padres e pastores e do boletim Palavra Partilhada. Não raro vinha à nossa casa pedir ajuda para elaborar (rapidinho!) uma coluna bíblica, de domingo à noite para segunda de manhã. Passamos horas tomando chimarrão e conversando!

Em 1987 viria a encerrar suas atividades em São Leopoldo. Transferiu-se para Guarulhos/SP. Desejava conjugar trabalho pastoral em comunidade e atuar como professor, o que não lhe fora atendido em São Leopoldo. Em 1988 começava sua trajetória como professor de Bíblia na hoje Universidade Metodista de São Paulo.

Como escreve Martin Dreher, “a casa pastoral de Guarulhos não foi apenas residência do pastor e de sua esposa. Era porta de acesso ao Brasil para um sem-número de pessoas que, vindas dos mais diferentes rincões do planeta, queriam conhecer o trabalho de comunidades eclesiais de base, de cristãos que eram movidos pela certeza de que em Jesus se alcança a libertação e que Deus é um Deus que nos liberta de cativeiros sociais, políticos, econômicos e espirituais. Milton tornava-se não apenas embaixador de teologia luterana, mas embaixador de teologia da Igreja de Jesus Cristo que vivia em cativeiro”.

Muitas vezes insistiu conosco para ir trabalhar com ele em São Paulo. Dizia ele que o nosso futuro pulsava em São Paulo... resistimos a este convite por que nossos filhos eram pequenos. Não obstante, a distância não impediu que nossos contatos fossem intensos. Nos anos que se seguiram na realidade – mesmo à distância – nossa amizade se intensificou. Sempre que vinha para o sul passava os dias em nossa casa.

Após sua cirurgia (tumor benigno inutilizou sua hipófise, forçando-o a tomar doses consideráveis de medicamentos nos últimos dez anos), quando vinha a São Leopoldo, era conosco que gostava de ficar por causa do apoio de que precisava. Sempre que alguém da nossa família viajava a São Paulo ia à casa do Milton. Nossos filhos se afeiçoaram muito a ele, sua esposa e filhas. Na última viagem à Terra Santa que coordenou convidou nosso filho Miquéias – historiador – a viajar com o grupo.

Nas últimas vezes percebemos a sua obstinação em visitar sua terra natal, a rever amigos, os espaços onde sua mãe passou importantes momentos de sua vida. Ah! E como gostava de provar as delícias de sua infância: a cuca, a linguiça, os vários sabores de geleia, o pão de milho... sempre que podíamos levávamos uma porção para São Paulo.

Em maio de 2011, quando veio pela última vez para São Leopoldo, tivemos longas conversas. Apesar da sua fragilidade crescente continuava a sonhar com o futuro e listava tudo o que ainda queria fazer. Na última vez em que conversamos ao telefone, antes que fosse internado, disse que nos preparássemos que já tinha mais 5 livros em fase final para publicar pela Oikos!

Aliás, ele foi o grande incentivador da Editora Oikos e nosso orientador constante. Dizia que o grande desafio era “quebrar” a lógica do mercado editorial. Resultado da nossa parceria foi a venda de mais de 25 mil livros nos últimos 6 anos. Vendeu mais de 3 mil exemplares do seu livro “Haggai” – em idioma alemão – (Ageu) em sua última viagem à Europa, por incríveis 2 euros a unidade. No final de 2010 e início de 2011 vendeu 10 mil unidades do livro “Figuras e Coisas”. Outro livro seu vendeu 2 mil exemplares (esgotando a edição) em 10 meses. Conforme ele, nunca antes os seus escritos eram lidos por tanta gente. Nunca vendera tantos livros...

Perdemos um grande amigo, parceiro de todas as horas. Humilde, apreciador das coisas simples, sua característica principal era apostar nas pessoas, acreditar no seu potencial, investir no ser humano. Deixa um grande legado. Milhares de estudantes de graduação e pós-graduação tiveram o privilégio de conviver com ele. Seus escritos rodam o mundo. Muito haveremos de aprender ainda com ele!

Entre as dezenas de livros publicados, lançou pela Editora Oikos: História de Israel: local e origens, Sofrimento e Esperança no Exílio, Deus vê, Deus ouve – Gênesis 12-25, Breve História de Israel, Sentenças e Provérbios, Haggai, Da vocação à provocação: Isaías 1-12, Figuras e coisas – Meditações e ensaios para viver. O mais recente livro “Salmos da vida – a caminho da justiça” será lançado nas próximas semanas.

Erny Mugge - 04/03/2012




Biografia de M I L T O N... S C H W A N T E S

xxxProf. D. Dr. Milton Schwantes doutorou-se em Teologia Bíblica pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha, em 1974. Desde então, sua alegria está voltada à formação bíblica e teológica de todos quantos se interessam por essas áreas, no Brasil, na América Latina e ainda em outros países. É natural de Tapera, Rio Grande do Sul. É professor da área de Literatura e Religião no Mundo Bíblico, do Programa de Mestrado e Doutorado em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo/São Paulo.

Em 2002, recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Marburg/Alemanha. Na ocasião, seu trabalho foi considerado uma ponte entre a Teologia Bíblica Latino-Americana e a Teologia na Europa. É Professor biblista que em sua caminhada presta serviços à formação em várias faculdades brasileiras de teologia. Por mais de duas décadas dá assessoria a grupos de Leitura Popular da Bíblia. É incansável motivador da formação de novos/as biblistas brasileiros/as e latinoamericanos/as.

Idealizou e contribui com a Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana (RIBLA). Publicou centenas de artigos e é autor de dezenas de livros, entre os quais, História de Israel: local e origens, Sofrimento e Esperança no Exílio, Deus vê, Deus ouve – Gênesis 12-25, Breve História de Israel, Sentenças e Provérbios, Da vocação à provocação – Isaías 1-12, Figuras e coisas – Meditações e ensaios para viver, todos pela Editora Oikos. É pastor luterano, de coração profundamente ecumênico.


Milton Schwantes: um perfil biográfico*

xxxMilton Schwantes nasceu a 26 de abril de 1946, às 8h30min, no Hospital N. S. do Rosário, na Vila de Tapera, no município de Carazinho/RS. O pai, Delfino Schwantes, e a mãe, Eugênia, nascida Graeff, residiam, então, em Lagoa dos Três Cantos, também pertencente ao município de Carazinho. Era o quarto filho do casal de agricultores. Milton Schwantes recebeu o Santo Batismo a 26 de maio de 1946, em Lagoa dos Três Cantos. Em 1951, Delfino Schwantes faleceu em conseqüência de cirurgia malsucedida.

Quando da morte do pai, os irmãos Norberto e Édio estudavam em São Leopoldo, no Instituto Pré-Teológico, curso de humanidades da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), que preparava para o futuro estudo teológico. Os dois irmãos tornar-se-iam, assim como mais tarde Milton, pastores. Outro irmão, Arlindo, seguiria a carreira do magistério, estudando na Escola Normal Evangélica, igualmente localizada em São Leopoldo.

Viúva, Dona Eugênia migrou com Milton para Nova Petrópolis. Os Schwantes haviam sido imigrantes alemães que, originalmente, se fixaram em Nova Petrópolis. Eugênia era natural do Vale do Taquari. Passado meio ano, mãe e filho rumaram para São Leopoldo. Trabalhando na cozinha do Instituto Pré-Teológico (IPT), Dona Eugênia conseguiu dar formação escolar digna aos quatro filhos. Pessoa de grande piedade, servia também como exemplo de fé para os muitos estudantes que se deslocavam de todas as partes do Brasil para estudar no Morro do Espelho. Até a velhice, sua piedade se fez presente na vida da comunidade luterana de São Leopoldo, que soube mirar-se nela também quando da morte de seu filho mais velho, Norberto, morto como deputado constituinte. Com as mudanças ocorridas, Milton estudou ano e meio em Lagoa dos Três Cantos, meio ano em Nova Petrópolis. O restante do “curso primário”, como eram designados então os cinco primeiros anos de estudo escolar, foi completado no Instituto Rio Branco, em São Leopoldo, educandário da comunidade luterana local.

Nos próximos sete anos, os estudos teriam prosseguimento no IPT. Quase que ao natural, preparava-se o caminho para a formação teológica. A escola IPT fornecia sólida formação humanística, na qual as línguas recebiam destaque: latim, grego, português, alemão e inglês. Aqui, os clássicos puderam ser lidos, de César a Cícero, passando por Tácito e por Ovídio, de Xenofonte a Platão, de Camões a Érico Veríssimo, passando por Alexandre Herculano, Júlio Diniz e Ferreira de Castro, Machado de Assis e Graciliano Ramos, de Walther von der Vogelweide a Bertolt Brecht e Robert Musil, passando por Schiller, Goethe e Heine, de Shakespeare a Thornton Wilder. História e geografia, as ciências físicas e biológicas e a matemática completavam o quadro. O canto, instrumentos musicais e o teatro tinham espaço garantido. No mês de julho, “excursões artísticas”, durante as quais comunidades luteranas do Brasil meridional e do Espírito Santo eram visitadas, permitiam que os talentos do IPT se expressassem. Neste ambiente, aos poucos, Milton foi se destacando como estudante, mesmo que tenha dito ter passado “por várias dificuldades, a maior das quais sem dúvida a expressão na língua alemã”, o que não era verdade. Verdade é que participava de geração de descendentes de imigrantes alemães no pós-guerra, os quais mais do que nunca queriam ser aceitos como brasileiros e inserir-se na então propalada “realidade brasileira”. Bom desportista, Milton também destacou-se como líder estudantil, participando da organização do Grêmio Estudantil do IPT (GEIPT), do qual também foi presidente, em tempos difíceis, pois no penúltimo ano de estudos no IPT acontecera o golpe militar (1964) e, paulatinamente, todo o movimento estudantil seria desarticulado. Os estudantes do IPT integraram, como últimos, a última diretoria da União Leopoldense de Estudantes Secundários. Para grande susto dos professores do IPT, organizaria, com outros colegas, o “Ratio Club”, nome pomposo para sociedade de estudantes escolhidos a dedo entre seus pares para discutir temas gerais da vida política, filosófica e religiosa. Para a tradição pietista de então, “ratio” era palavra mais do que suspeita.

Em 23 de outubro de 1960, aos 14 anos, Milton foi confirmado na Igreja Luterana de São Leopoldo. O Rev. W. Hilbk deu-lhe para a caminhada na vida de fé a palavra “Buscai, em primeiro lugar, o Seu reino e a Sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mateus 6.33).

Em março de 1966, Milton iniciava seus estudos na Faculdade de Teologia da IECLB. Estava com 19 anos. Na época, a Teologia ainda era marcada por alguns nomes exponenciais. Havia, inclusive, colegas de semestres mais avançados que declaravam pertença a escolas teológicas. Havia os bultmannianos. Rudolf Bultmann já não mais governava. Democrático, permitia que a seu lado surgissem “estrelas” bastante díspares como Herbert Braun, Ernst Fuchs ou Ernst Käsemann. Sua marca registrada era o charuto. Os discípulos de Bultmann eram bastante autônomos. Alguns estudantes sentiam-se atraídos pelo “Chamado para a Liberdade”, de autoria de Käsemann, publicado em 1968 em quarta edição. Ao lado dos bultmannianos existiam os barthianos. Sua marca registrada era o cachimbo. Barth, mesmo tendo atacado violentamente o nazismo, não era muito chegado à democracia em questões teológicas. A primeira geração de seus discípulos não podia se afastar um centímetro sequer da KD, abreviatura então usual no jargão teológico para a Kirchliche Dogmatik (Dogmática Eclesiástica) do teólogo suíço. A maior parte de seus discípulos (Ernst Wolf, Hermann Diem, Walter Kreck, Helmut Gollwitzer) até consentia em que o mestre pensasse por eles, diziam as más línguas. Alguns dos colegas mais adiantados chegaram a devorar a Summa Theologica de Barth. Na Europa, Barth e Bultmann digladiavam-se como baleia e elefante, segundo dizia Barth. Lá e cá havia os que buscavam intermediar entre Barth e Bultmann, sem sucesso. Para os que ingressavam em 1966, as brigas entre os dois “B”s já não interessavam, mesmo que fosse interessante observar entre os professores de São Leopoldo alguns netos dos velhos, quando iniciavam algum debate.

A geração de Milton não experimentou mais a formação de escolas teológicas tão claramente delimitadas quanto o experimentara a geração anterior. Não havia mais alternativas? Tinha medo do debate político? Da Europa ainda vinham, através dos professores majoritariamente alemães, ecos de alguns debates. Lá acontecia a “Teologia Política”, liderada pelo católico Johann Baptist Metz. Havia grupo em torno de Trutz Rendtorff que se designava de “Teologia do Cristianismo”, neoprotestantismo redivivo. Mas não se brigava mais. Não se ouvia mais um “não!” ou um “sim!” categórico. Houve discussões em torno da secularização (Gogarten); surgiu a “Teologia-da-Morte-de-Deus” (Altizer e Hamilton); alguns se preocupavam com a cidade secularizada (Harvey Cox, A cidade do homem). Discutia-se a possibilidade de ainda se fazer teologia depois de Auschwitz (Dorothee Sölle), numa autocrítica muito salutar. Wolfhart Pannenberg desenvolveu uma “Teologia da História” como alternativa à teologia de Bultmann. Foi aceito por setores conservadores e rejeitado pelos barthianos. Na Alemanha se desenvolvia, ainda, contra Barth e Bultmann, um movimento designado de “Nenhum Outro Evangelho”. Era prenúncio de forte tendência evangelical que logo se manifestaria na IECLB, sendo confundida com teologia arminiana, trazida por pastores luteranos dos EUA para um Brasil no qual o protestantismo de missão tendia sempre mais para uma teologia influenciada pela extrema direita do senador norte-americano MacCarthy.

Estávamos, em São Leopoldo, nos anos de 1966, 1967, 1968... em crise. Nossos sonhos tinham sido abortados em 1964. Só viríamos a votar para presidente com os nossos filhos. Na difícil situação de 1964, um livro se nos tornou livro de cabeceira e nos fazia refletir: Resistência e submissão, as cartas de Dietrich Bonhoeffer em seu cativeiro. Seu tradutor, Ernst Bernhoeft, judeu luterano, fugira para o Brasil durante o regime nacional-socialista, tornara-se professor na IECLB, mas não fora aceito no ministério pastoral luterano. Depois, atuou, com muita bênção, na Igreja Episcopal Anglicana do Brasil. Em 1966, em Genebra, um ex-professor do Seminário Presbiteriano de Campinas tornara pública sua “Teologia da Revolução”. Como ser cristão em situação revolucionária, de total efervescência como a América Latina daqueles dias? Richard Shaull nos auxiliou com seu livro Transformações profundas à luz de uma teologia evangélica, publicado pela Editora Vozes, pois não havia editora protestante com suficiente coragem para publicá-lo. Em 1966, caiu-nos nas mãos a sexta edição do livro que nos determinaria, Teologia da esperança, de autoria de Jürgen Moltmann. A primeira edição saíra em 1964. O livro de Jürgen Moltmann perguntava pelas conseqüências da escatologia cristã para nosso fazer e viver teológico na América Latina.

Os estudantes da Faculdade de Teologia éramos quase todos descendentes de imigrantes alemães. A IECLB era “igreja de alemães”; mais de 70% de seus pastores ainda eram alemães. A América Latina, o Brasil quase não participavam de nosso horizonte, se bem que – verdade seja dita –, desde o choque da Segunda Guerra Mundial, o Brasil fosse cada vez mais o horizonte da Igreja Luterana. Naqueles anos, a miséria da maioria da população do “Terceiro Mundo” começou a ter significado teológico e a encontrar expressão teológica. No protestantismo brasileiro, a Conferência do Nordeste que falara de Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro foi um marco. Nossa situação de então leva-nos a perguntar pelo que estava acontecendo em termos de teologia na América Latina e que nos viria a influenciar após nossa saída da Faculdade de Teologia.

Na história eclesiástica do século XX, a eleição de João XXIII, a 28 de outubro de 1958, vai ser lembrada como marco de singular importância, pois já em janeiro de 1959 este papa convocou o Concílio Vaticano II. Podemos designar João XXIII de papa da distensão. Suas encíclicas Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963) e seu falar da “Igreja dos Pobres” foram de fundamental importância para os compromissos sociais e políticos do catolicismo na América Latina e não deixaram de repercutir também no seio do protestantismo latino-americano.

As colocações feitas por João XXIII em suas encíclicas e pronunciamentos coincidiram com uma época de ebulição em toda a América Latina. Em 1º de janeiro de 1959, Fidel Castro pôs fim ao regime de Fulgencio Batista, em Cuba. Desde aquele ano, as esquerdas passaram a pensar que o movimento guerrilheiro tinha chances, que o marxismo representava a única via para a liberdade e que o socialismo poderia ser concretizado na América Latina. Camilo Torres o sacerdote que julgava não mais poder consagrar os elementos da eucaristia, enquanto houvesse opressão, e Ernesto Che Guevara eram modelos. Em 1966 morreu Camilo, em 1967 Che. A primeira fase da guerrilha chegava ao fim: em 1969 morreu Carlos Marighella, no Brasil; em 1973 deu-se o fim do movimento tupamaro, no Uruguai, e em 1978 terminou o movimento montonero, na Argentina. Fidel, Camilo Torres, Che faziam parte de nosso saber e estudar, mesmo que seus nomes só pudessem ser balbuciados em silêncio. Desde 1º de abril de 1964, o Brasil passou a viver sob regime militar, introduzindo, em 1968, a doutrina da segurança nacional. As esperanças de muitos repousavam no “modelo chileno”, introduzido por Salvador Allende no Chile (1970-1973) e, depois, no Peru (Alvarado, 1968), na Argentina (1971ss, Lanusse e Perón) e na Bolívia (1971, Torres).

No entanto, desde 1968, anunciaram-se sucessivos golpes militares que introduziam “regimes de segurança nacional” e que punham fim aos sonhos que julgavam ser possível a introdução do socialismo por meios pacíficos. Em 1968, militares golpearam militares, introduzindo esse novo tipo de regime no Brasil e exportando-o nos anos seguintes: Bolívia (1971), Uruguai (1973), Chile (1973), Peru (1975) e Argentina (1976).

Os únicos países em que a situação ficou mais ou menos estável na América Latina foram o México e a Venezuela. Ao México afluía a inteligência expulsa da América do Sul. Enquanto os regimes de segurança nacional campeavam na América do Sul, desde 1976/77 a inquietação tomava conta da América Central, culminando em 1979 com a vitória do movimento sandinista, na Nicarágua. Na América do Sul, regimes militares cansados e no fim de sua sabedoria permitiram o retorno da democracia, e, aos poucos, explodiu toda a miséria de um Continente, ficando mais evidente do que nunca. Contava-se já o ano de 1985.

Nesses anos conturbados, porém, foi gestada teologia de maneira muito séria, buscando elementos para que o povo de Deus pudesse sobreviver no deserto, sem perder as esperanças em relação ao reino de Deus.

Desde 1965, alguns sacerdotes católicos se reuniam em diversos países do continente: Gustavo Gutiérrez, Juan Luis Segundo e Segundo Galilea, entre outros. Estes sacerdotes formularam suas principais teses entre 1965 e 1970. Em Montevidéu desenvolveu-se, na mesma época, o trabalho de ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina). Aqui a teoria da dependência e a sociologia da libertação foram pesquisadas. O grande pensador teológico desse grupo foi Richard Shaull, professor do seminário teológico da Igreja Presbiteriana do Brasil, em Campinas, e, desde 1962, professor em Princeton, nos Estados Unidos.

Shaull reconheceu as tendências revolucionárias na América Latina e fez a tentativa de interpretá-las à luz do Evangelho. Daí resultou seu livro As transformações profundas à luz de uma teologia evangélica, publicado pela Editora Vozes, em 1966. A violência e a revolução são os temas a partir dos quais dirige perguntas à Igreja. Conhecida tornou-se também a publicação de ISAL, Cristianismo y Sociedad. Ao lado de Shaull devem ser mencionados como representantes da teologia da libertação no âmbito evangélico pessoas como Emilio Castro, Julio de Santa Ana, José Míguez Bonino e Rubem A. Alves. ISAL também serviu de lar para católicos como Hugo Assmann e Pablo Richard, quando tiveram que ir para o exílio, desamparados por suas igrejas. Ao contrário do grupo mencionado em primeiro lugar, os teólogos evangélicos tiveram grandes dificuldades. Em sua maioria não eram aceitos por suas denominações e tiveram que receber suporte do Conselho Mundial de Igrejas. O grupo reunido em torno de Gutiérrez recebeu apoio de bispos.

Em nossos estudos, em São Leopoldo, pouco do que estava sendo fermentado na América Latina movia nossos estudos teológicos. No período de 1966 a 1970, tivemos muita exegese bíblica, estudamos a História Eclesiástica, que não contemplava a América Latina, debruçamo-nos sobre a Teologia Sistemática e a Ética, tivemos aulas de Teologia Prática, tudo com grande empenho de nossos professores: Gerhard Barth, Joachim Fischer, Lindolfo Weingärtner, Hans Strauss, Bertholdo Weber, Harm Alpers, Gottfried Brakemeier, Nelson Kirst. Milton Schwantes teve, na época, em 1969, o privilégio de estudar por um semestre em Buenos Aires, com Leskó, Obermüller, Ruuth e Bahmann, onde pôde respirar ares distintos dos nossos.

Em 4 de julho de 1970, Milton concluiu seus estudos na Faculdade de Teologia. Seu trabalho de conclusão da graduação comparou o decreto sobre o ecumenismo do Vaticano II (1964) com as declarações sobre a unidade emitidas na conferência do Conselho Mundial de Igrejas em Nova Delhi (1961). Na época, a direção da IECLB preocupava-se com a formação de um quadro docente teológico que viesse de encontro à “indigenização” da Igreja, como se dizia na época. Dentro desse programa, em 1970, já haviam concluído seus doutorados Lindolfo Weingärtner (Teologia Prática), Gottfried Brakemeier (Novo Testamento) e Nelson Kirst (Antigo Testamento). Na Europa encontravam-se para estudos de pós-graduação Hans Benno Asseburg, Ervino Schmidt e Walter Altmann. Milton foi indicado para a pós-graduação em Heidelberg, junto ao professor Dr. Hans Walter Wolff. Antes de partir, para iniciar seus estudos em 1971, contraiu matrimônio com Elisabeth Klein. Os estudos foram possibilitados por bolsa da Igreja Evangélica na Alemanha e do Fundo de Educação Teológica do Conselho Mundial de Igrejas. Em Heidelberg, suas atenções centraram-se no direito dos pobres. Foi esse também o tema de sua tese O direito dos pobres, na qual estudou os conceitos utilizados para caracterizar os pobres na Lei e nos Profetas. Milton centrou suas atenções no grupo dos socialmente fracos do antigo Israel. Verificou que os pobres não são grupo periférico, mas que são praticamente idênticos ao povo de Deus. Deus é um Deus que se volta aos que sofrem. A descoberta feita no estudo do Antigo Testamento estava a apontar para o canto firme de novo período na história da teologia, particularmente da América Latina. No prefácio de sua tese, Milton escrevia: “Em sua obra decisiva para a nova reflexão teológica na América Latina – Teología de la Liberación – Gutiérrez novamente apontou para a importância das afirmações bíblicas – especialmente as vétero-testamentárias – sobre a pobreza para um testemunho cristão, ‘do qual depende a autenticidade da pregação da mensagem evangélica’.” Mal imaginava o jovem exegeta, com seus 28 anos, que em breve estaria a integrar a corrente daqueles que participariam da releitura da mensagem bíblica no contexto brasileiro e latino-americano, vindo a ser um de seus principais expoentes. O período entre 1970 e 1975 deve ser visto como tempo da livre expansão da teologia da libertação. A época foi caracterizada por diversos congressos. O primeiro deles ocorreu em El Escorial (8-15 de julho de 1972). Os resultados desse congresso foram publicados na revista Concilium (junho de 1974). Já em agosto de 1975, no México, por ocasião de um segundo congresso, descobriu-se que existia uma ampla frente de teólogos da libertação, em oposição à qual se podia constatar diversas posições, que, no entanto, não formavam uma unidade. O desenvolvimento político no Continente não permitiu novos encontros.

As primeiras publicações mais importantes surgiram igualmente nos anos de 1970 a 1975. Juan Luis Segundo publicou, em 1970, Da sociedade à teologia e, em 1975, Libertação da teologia. Hugo Assmann escrevia, em 1971, Opressão – libertação: desafio para os cristãos, em 1973, Teologia desde a práxis da libertação. Rubem Alves publicou, em 1969, A theology of human hope. A obra saiu com esse título porque a editora não concordou com o outro: Teologia da Libertação. José Míguez Bonino escreveu, em 1976, A fé em busca de eficácia.

Logo surgiu uma segunda geração de autores, cujas obras devem ser vistas como conseqüência de Medellín. Entre eles devem ser mencionados: Severino Croatto (Argentina), Ronaldo Muñoz (Chile), Leonardo Boff (Brasil), Raúl Vidales (México). Especial destaque merece nessa geração o argentino Enrique Dussel, cujas publicações surgiriam no exílio mexicano. Doutor em Filosofia, Teologia e História, Dussel concentrou em sua pessoa um largo espectro da teologia da libertação, tendo publicado em 1972, em Barcelona, sua História da Igreja na América Latina, que veio a servir de modelo para o projeto da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), que procurou escrever história da Igreja desde a ótica dos oprimidos. Ao lado de Dussel, devem ser mencionados os nomes de Eduardo Hoornaert, José Oscar Beozzo e Riolando Azzi.

O desenvolvimento político da América Latina não deixou de ter influências sobre a teologia da libertação. Em 1975, Leonardo Boff escreveu sua Teologia a partir do cativeiro. Gutiérrez publicou, em 1977, Teologia desde o avesso da história e, em 1978, A força histórica dos pobres. Nessas obras, começaram a surgir novos acentos. A libertação foi vista como a luta pacienciosa, persistente do povo latino-americano, em situação de perseguição e opressão. Enquanto algumas pessoas pensavam que os estados de segurança nacional significavam um retrocesso para a teologia da libertação, aconteceu o contrário: a teologia da libertação se espalhou. O movimento popular e as comunidades eclesiais de base assumiram os pensamentos da teologia da libertação, especialmente no Brasil, mas também no México, El Salvador, Peru, Chile e Bolívia.

Por isso, também é compreensível que a teologia da libertação tenha vindo a se tornar mais e mais reflexão sobre a práxis dos pobres, que se haviam organizado em comunidades e movimentos. Nesse sentido, a teologia da libertação deixava mais e mais de ser reflexão da práxis da inteligência para ser popular. Novos autores participaram dessa fase: Clodovis Boff e João Batista Libânio (Brasil), Jon Sobrino (El Salvador). Revistas se abriram à teologia da libertação: Revista Eclesiástica Brasileira (REB) (Brasil) e PÁGINAS (Peru).

Depois, especialmente o trabalho exegético passou a ser incrementado. O nome mais conhecido entre os exegetas da teologia da libertação é o do carmelita Carlos Mesters. Merecem, no entanto, ser mencionados os nomes de José Comblin, Jorge Pixley, Gilberto Gorgulho, Ana Flora Anderson e Milton Schwantes. A experiência das comunidades eclesiais de base perguntava pela Escritura.

A maior divulgação da teologia da libertação, no entanto, aconteceu através de folhetos e de cópias de conferências, pois os seus teólogos não dispunham de grandes bibliotecas nem lhes era concedido o acesso às cátedras teológicas. Vasta foi também a divulgação da teologia da libertação através do cântico.

As reações à teologia que se desenvolveu nesse contexto foram muitas. As críticas chegaram a seu auge após a publicação, em 1981, da coletânea de artigos do franciscano Leonardo Boff, Igreja, carisma e poder.

Neste contexto, Milton Schwantes retornou ao Brasil, em agosto de 1974, sendo indicado pelo Conselho Diretor da IECLB para atuar como pastor em Cunha Porã/SC. Nessa atividade, foi pastor querido por seus paroquianos. Pequeno exemplo de sua atividade no período foi a publicação do caderno Sementes. A linguagem simples e vigorosa fala de cristãos como sal da terra, do “meu povo” de Miquéias: o povo humilde e humilhado, as camadas mais pobres da população, e apela para que a Igreja Luterana volte seus olhos para os desvalidos. Com outros colegas, participou de elaboração de material para a catequese e para o ensino confirmatório. Os pastores do então Distrito Uruguai da IECLB tinham sua própria editora: A Publicadora Uruguai (PU), e a série de suas publicações era designada de Cadernos do Povo. Ao lado destas publicações, desde 1977 publicava também, regularmente, auxílios homiléticos na série Proclamar Libertação. Milton participou destas atividades até julho de 1978, quando veio o convite para ser professor na Faculdade de Teologia da IECLB, em São Leopoldo, hoje Escola Superior de Teologia.

Milton passaria a ser professor de Antigo Testamento. A teologia bíblica que o ocupava desde os tempos da confecção da tese de doutorado, a experiência feita em Cunha Porã e os contatos ecumênicos faziam-no acentuar a dimensão profética do ministério pastoral e do ser do professor de Teologia Bíblica. Por isso, pediu para não residir no Morro do Espelho, sede das instituições da IECLB, em São Leopoldo, mas no Bairro São Borja, em casa simples. Queria fazer teologia no diálogo com os vizinhos, gente simples. A solidariedade com pastores e pastoras que atuavam em condições difíceis fê-lo optar pelo mesmo salário recebido por eles e elas, desistindo de um abono concedido aos professores de Teologia. A época era a da colocação de sinais. Sinal também foi colocado em sua preleção inaugural, expressão utilizada para a conferência pública com a qual a instituição Faculdade de Teologia apresentava seus novos professores. A conferência levou por título “Natã precisa de Davi”. O título sugestivo gerou polêmica e muita reflexão. Polêmicas foram também as preleções e seminários dirigidos pelo novo professor, que logo soube atrair a atenção e o carinho dos estudantes. Em pouco tempo, o exegeta ficaria conhecido além das fronteiras da pequena Igreja Luterana e começaria a dar sua contribuição para o estudo da Bíblia que se intensificava em todo o continente latino-americano.

Naquele final da década de 1970 e ainda durante a década de 1980, pouco era o material exegético de qualidade que poderia ser oferecido aos estudantes de Teologia. Em nível interno, Milton tomou iniciativa importante, na qual continuou a exercitar o que fizera anteriormente em Cunha Porã. Incentivou seus colegas a publicar manuscritos em forma de cadernos de estudos. Muitas publicações que hoje são sucesso editorial, entre as quais se encontram textos do próprio Milton, começaram a ser difundidas nessa forma singela. Aos poucos, a publicação de textos foi se multiplicando. Lembre-se aqui o pequeno comentário sobre Ageu, publicado no Comentário Bíblico AT, em 1986, A família de Sara e Abraão, também de 1986, e sofrimento e esperança no exílio, de 1987, surgido a partir de estudos realizados no Chile, em meio a gente muito sofrida.

Em 1987, ocorreram também o encerramento das atividades em São Leopoldo e a transferência para Guarulhos/SP. Ali, Milton pretendia fazer a experiência de conjugar trabalho pastoral na congregação luterana e atuar como professor. Desde 1988 seria professor de Bíblia no que hoje é a Universidade Metodista de São Paulo. A casa pastoral de Guarulhos não foi apenas residência do pastor e de sua esposa. Era porta de acesso ao Brasil para um sem-número de pessoas que, vindas dos mais diferentes rincões do planeta, queriam conhecer o trabalho de comunidades eclesiais de base, de cristãos que eram movidos pela certeza de que em Jesus se alcança a libertação e que Deus é um Deus que nos liberta de cativeiros sociais, políticos, econômicos e espirituais. Milton tornava-se não apenas embaixador de teologia luterana, mas embaixador de teologia da Igreja de Jesus Cristo que vivia em cativeiro. Sua produção teológica desde então não pode mais ser mencionada com o arrolamento de alguns poucos títulos. Aqui seria necessário arrolar as centenas de títulos, de orientações de dissertações e teses, conferências... e o espaço se torna pequeno. Certo é que, ao atingir os 60 anos de idade, sua produção o coloca entre as mais expressivas personalidades do mundo acadêmico brasileiro e entre os grandes da exegese internacional. Foi este o motivo que levou a Universidade de Marburgo (Alemanha) a conceder-lhe, em 2002, o título acadêmico de Doutor Honoris Causa. Seus muitos alunos há muito romperam os limites da pequena Igreja Luterana, sendo encontrados nas mais diferentes denominações cristãs do Brasil e do exterior.

A menção do ano da concessão do título de Doutor Honoris Causa força-nos a refletir sobre situações de sofrimento na vida do teólogo. O teólogo cristão só conhece a Deus a partir daquele lugar em que Deus revelou o seu rosto: a cruz de Jesus de Nazaré, confessado como o Cristo. Deus se revela sob o contrário do que é, também para o teólogo que tem que experimentar, não raro, em sua vida cruz e sofrimento para poder compreender o real significado da ressurreição e da esperança que brota da manhã da Páscoa. O teólogo Milton teve que experimentar o fim de seu casamento com Elisabeth. Foi situação de cruz e de sofrimento para ambos. Depois, Milton pôde iniciar nova união com Rosi, que lhe trouxe três meninas, as quais passaram a ser suas filhas. Mal esta nova fase em sua vida iniciara, e nova aflição abateu-se sobre ele, seus familiares e amigos. Começaram a se acentuar dificuldades com a visão, as quais, assim se verificaria, eram provocadas por tumor benigno. Também tumores benignos causam danos irreparáveis. Fez-se necessária cirurgia, longo período de recuperação, mantiveram-se lacunas na memória. Houve a necessidade de longo período de adaptação e o aprendizado de que, quando Deus nos preserva e nos sustenta por mãos amigas, precisamos reaprender a dar passos pequenos e a dizer, novamente: “Por tua mão me guia, Senhor Jesus...”, usando as palavras de hino luterano, cantado por diversas gerações.

Quando se traça perfil biográfico de um teólogo que aprendeu intelectual e vivencialmente o significado da theologia crucis, o autor não pode terminar numa laudatio, mas tem o dever de oferecer discurso correspondente à theologia crucis. A teologia que Milton Schwantes até agora transmitiu e continua transmitindo trouxe muito movimento abençoado para o contexto no qual vive, para suas comunidades cristãs e para seu kairós. Milton concretizou teologia sobre a terra. Procurou tornar a Verdade concreta. A Verdade sempre é concreta, como é concreta a Verdade que liberta. Os explorados, exilados e oprimidos, para os quais foi formulada, muito lhe devem. Pobres, afro-descendentes e mulheres que hoje andam de cabeça erguida muito devem às teologias formuladas em contexto. Da história da Igreja, no entanto, se aprende que as teologias contextuais estão limitadas a tempo e a espaço. Suas possibilidades também são limitadas. Podem ainda existir radicalizações e influências sobre outros, mas sempre surge o instante da estagnação. Há teologias que ainda conseguem ver seus filhos e netos, raríssimas os bisnetos. Gustavo Gutiérrez soube, por isso, situar a teologia da libertação na teologia da vida. E aqui é importante verificar que houve mudanças no fazer teologia. Elas merecem nossa reflexão.

A geração de teólogos e teólogas que comungou com Milton Schwantes leitura e interpretação semelhantes do Evangelho fez a experiência de que, muitas vezes, as coisas acontecem de forma distinta do que aguardavam.

Às vésperas da conclusão de seus estudos de graduação em Teologia, em 1968, o cheiro de revolução estava no ar. Havia protestos contra a Guerra do Vietnã (Era um garoto que, como eu, amava os Beatles e os Rolling Stones...), contra a sociedade de consumo capitalista e contra a ditadura do socialismo real dos burocratas. Nem o Oriente nem o Ocidente gostavam destes protestos, pois eles “solapavam” a ordem estabelecida. Perguntávamos como mudar o status quo lá e cá. As bases, os fundamentos da sociedade deveriam ser alterados. A palavra “revolução” significava muitas coisas e era utilizada para muitas finalidades: revolução socialista, revolução democrática, revolução sexual, revolução cultural, revolução de costumes... Para amainar o “ímpeto revolucionário” alguns se valiam da palavra “religião” e contrapunham a religião à revolução: jovens crentes não participam de demonstrações!

Nesse período, a leitura teológica da sociedade se alterou, profundamente. Lendo Harvey Cox, dizíamos que a sociedade se secularizava (não víamos que no Brasil se tornava cada vez mais religiosa!); interpretando Bonhoeffer, considerávamos a sociedade sem-religião, quando já havia muitos que a passavam a perceber multirreligiosa. Enquanto alguns ainda buscavam diálogo com ateus (Moltmann, Jüngel, Machovec, Sölle), Hans Küng passou a andar de braços dados com as grandes religiões e afirmou que o diálogo inter-religioso era uma das mais importantes tarefas teológicas (!) do mundo moderno. Numa leitura similar que permanece até hoje, algumas denominações cristãs, comunidades e teólogos julgam este diálogo tão importante que ateus, pessoas sem religião e tais que se distanciam da Igreja não mais importam. É certo que a religião se tornou questão de foro íntimo. Sobre qualquer forma de religião e de sentimento religioso se encontra oferta nas livrarias esotéricas. Quando teólogos só buscam mais o diálogo inter-religioso, seu horizonte de diálogo fica bastante restrito. Será que cristãos são apenas “pessoas religiosas”? Que interesse político há por trás da intenção de que pessoas religiosas dialoguem consigo mesmas e deixem o restante do mundo em paz?

Blumhardt e Bonhoeffer nos lembram que Jesus não trouxe uma nova forma de religião, mas “vida nova”. Parece-me que o Evangelho da vida se dirige ao mundo da religião e ao mundo não-religioso, pois a vida do mundo está no centro da fé cristã (Jo 1.4).

Os reformadores promoviam longos debates sobre a “verdadeira” e a “falsa” Igreja. Discutiam até chegar a compromissos ou a se separarem. O “diálogo” busca “caminhadas”, nada sabe de um alvo. Quando o diálogo chega a um resultado, está no fim, acabou. Os que dialogam se aproximam, aprendem a conviver, mas não se convencem.

Com isso não estou a dizer que o diálogo inter-religioso não seja importante. Ele nos ajuda a conhecer o outro e a nós mesmos. Pode diminuir preconceitos, mas não leva o outro a se tornar cristão; no máximo estabiliza o status quo. No fim, tudo “acaba em pizza”, em “diversidade reconciliada”. Assume-se a indiferença tolerante da pós-modernidade. A teologia reduzida a “diálogo inter-religioso” é programa conservador e mais um placebo.

Diálogo só faz sentido onde é indispensável. Diálogo dos “homens de boa vontade” é perda de tempo. Diálogo é indispensável em relação aos extremistas da religião. Quem está dialogando com os fundamentalistas islâmicos? Quem está dialogando com os fundamentalistas cristãos? Quem tem que dialogar com fundamentalistas islâmicos é o Islã pacífico. Dialogar com os guerreiros de Deus que cercam Bush é tarefa de teólogos cristãos. Mas ambos têm que dialogar por causa dos perigos que cercam o mundo, e aí o diálogo se transforma em debate que busca a Verdade...

Na década de 60 buscou-se solucionar a questão da identidade através do protesto: a razão da existência era o protesto; na década seguinte, a questão era a “curtição”. Faziam-se shows para “curtir”. Tudo era feito para a recreação, tinha “finalidade recreativa”, narcisismo puro. Por isso, se passou a buscar a identidade do ser humano em seu “interior espiritual”. A conseqüência foi a despolitização: pão e circo.

Na Europa, perdeu-se o interesse pela América Latina e pela África, “o continente morto”. Na América Latina, cresceram o esoterismo e a “auto-ajuda”. Nesses círculos, a “teologia política” passou a ser considerada desprezível. Não foi por acaso que, no meio católico europeu, psicólogos passaram a ter crescente importância. Estudavam mitos e lendas. A “estrutura profunda da alma” passou a ser estudada no exemplo de Chapeuzinho Vermelho ou de Moisés. Deixou-se de lado o contexto social e político da narrativa. No mundo protestante, experimentou-se um renascimento de Schleiermacher. Buscou-se, especialmente na Teologia Prática, a “excitação de disposições mentais piedosas”. A revolução não interessava mais, mas a religião. Na religião se deveria sentir “o sabor do infinito”, que antes os fumantes sentiam ao fumar Hollywood com filtro ou Minister. O discurso “que faz bem” substituiu, nos púlpitos, a teologia profética com suas provocações dolorosas. A teologia deixava de ser sal da terra que machucava a ferida para se tornar chantili de um show de bolo saboroso. Nada exigia, nada provocava.

Seria bom discutir aqui o que aconteceu com os seminários teológicos, mas isso é outra conversa.

No centro da fé cristã está a missão (do Reino) de Deus no mundo. A mensagem da Igreja é o Evangelho da vida. Teologia é teologia pública e deve dirigir-se a todos.

Milton Schwantes viveu e experimentou tudo isso. Rogo que continue no debate, ad multos annos.



Martin N. Dreher

Natural de Montenegro/RS, doutorou-se em História da Igreja, na Universidade de München/Alemanha. Foi professor e reitor da Escola Superior de Teologia da IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, em São Leopoldo/RS, cidade na qual, atualmente, atua no programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Suas publicações estão, mormente, dirigidas à História da Reforma religiosa do século XVI, à História da Igreja e da Imigração e Colonização na América Latina.

xxx

* (In: Profecia e Esperança: um tributo a Milton Schwantes. Carlos A. Dreher, Erny Mugge, Iria Hauenstein e Isolde Ruth Dreher (Orgs.),  Editora Oikos, p. 11-23, 2006. Informações sobre o livro: contato@oikoseditora.com.br)








MILTON SCHWANTES - Meditações






Figuras e Coisas


Meditações e
ensaios para viver

128 p.


Este conjunto de 52 meditações – Figuras e Coisas é fruto de um lindo e emocionante encontro na vida e na alma. Com estas meditações, pretendemos promover um caminho. Queremos mostrar como as experiências da Bíblia vêm em direção às nossas vidas. E, ao mesmo tempo, iremos indicar como o nosso próprio dia-a-dia se abre para a vida das pessoas de tempos bíblicos. Em Figuras e Coisas, quisemos que houvesse uma dimensão de figura. As figuras deveriam estar a caminho das coisas da vida. Indo e vindo – vem se fixar demasiado – num ou outro aspecto. Este ir e vir é nosso jeito. Para este caminho, rumo ao encontro, convidamos você.


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“Deus escolheu as coisas fracas”

No natal comemoramos um transtorno, uma certa desordem. A ordem está em que quem mais tem mais manda. Uns mandam outros obedecem. Os uns que mandam são poucos, os que tem que obedecer são muitos. Isso parece ser ordem. Em relação a ela, natal é desordem.

Pois, Jesus é parte dos muitos que nada tem, que nada mandam. Sua família teve que obedecer a um decreto do imperador romano. Este, sim, mandava. Maria e José obedeciam. Tinham que obedecer. Jesus nasce entre estes que nada tem, tudo devem, a tudo tem que se submeter.

Mas, a este que nada parecia ter, “todos os joelhos se dobram”. Eis a desordem! Eis a inversão! Através da criança Jesus, na pequena cidade de Belém, se implanta o inverso da ordem, na qual quase todos obedecem aos caprichos de alguns poucos.

Por isso, natal comemora uma provocação. Nossos olhos são provocados, abertos a ver a vida de modo novo, de outro jeito. Já não precisamos ver o mundo a partir do poder. Estamos livres para vê-lo de outro jeito: do ponto de vista do que nada é. À luz do natal, os que nada são- aos olhos dos poderosos deste mundo, que costumeiramente também são nossos olhos - passam a ser uma vocação: Deus nos chama a ver nossa vida, a viver nossos dias a partir dos que nada são, e em solidariedade com os que nada tem.

Neste sentido, natal não precisa de assistencialismo, mas de solidariedade. Assistencialismo mantém a ordem; é feita de cima para baixo. Solidariedade só é possível quando a gente se coloca ao lado de outra pessoa. Solidariedade como que nos puxa para a igualdade.

E esta é a melhor maneira de viver a vida, de crer em Deus, de ver o mundo. Quem vê o mundo de cima pra baixo, vê-o de modo superficial, porque a tudo encherga de longe, Quem vê a vida de baixo para cima, a tudo experimenta melhor, porque a tudo vê em profundidade e a partir do fundo do poço.

Isso, por certo, é inesperado, é escandaloso!

A obra de Deus é mesmo um escândalo, como se lê em 1 Coríntios 1,26-29. Afinal, nós humanos, por exemplo, nos arrogamos a falar de coisas e de pessoas como se estas fossem descartáveis. Imaginamos que existem coisas e pessoas que, por nada serem em nossa vã imaginação, podem ser desconsideradas, feitas lixo, invisível, desnecessário, descartável. Árvores seriam pouco úteis. Prisioneiros seriam não-humanos. Pobres, enfim, seriam gente atrasada, logo descartável.

O descarte é um dos sinais de nossos tempos. É emblema dos tempos modernos!

Aliás, assim também já pensava o senhor faraó, conforme o livro do Êxodo. Cria que aqueles escravos e escravas que estavam à sua disposição, porque os controlava pela força das armas, nada mais fossem que instrumentos de trabalho, peças descartáveis, porque em seguida substituíveis por outros escravos e escravas. Mas, não é assim que age nosso Deus. Ele libertou escravas e escravos das garras do faraó. Quem parecia descartável, em verdade, era amigo e amiga de Deus! Imagino que o faraó ficou muito surpreso!

Sim, assim até se pensava a respeito de Jesus. Cria-se ser possível descartá-lo ao nascer em Belém, ao ser eliminado no Gólgota, na Caveira! Pensava-se que um crucificado estaria desautorizado por ser de todo indigno, um nada. Mas Deus decidiu diferente. Em Belém e na cruz do Calvário/Gólgota, nos fez ver a seu próprio filho, a ele mesmo. O que nada era, é tudo, é filho do Deus eterno.

Mas, justamente, a gente enfraquecida é escolhida por Deus! É feita seu povo, sua comunidade. São seus escolhidos.

Em Deus, não há o que seja descratável, nem na criação, na natureza, nem entre pessoas. Uma sociedade, que crê poder descartar pessoas, além de estar perdendo o bom senso,
afasta-se dos caminhos de Deus. Distancia-se de sua providência que atenta aos que nada são.

Feliz natal, com Jesus, aquele que nada parecia ser, mas ao qual todo joelho se dobra.

Ó Deus, santo e triúno, louvor a ti, porque estás em nosso meio do jeito da manjedoura de Belém. Amplia esta tua presença entre nós, a olhos vistos, para que cresça nossa fé. Transtorna nossos caminhos, para que sempre possamos encontrar-nos naquele que leva a Belém. Em Jesus, amém.

“Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação: não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento. Pelo contrário, Deus escolheu as cousas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as cousas fracas de mundo para envergonhar os fortes.”
(1ºCoríntios 1,26-27 - tradução de João Ferreira de Almeida)


Eucaristia e economia

Hoje, é domingo sem eucaristia, sem celebração. Estamos, aqui, no salão de nossa Igreja para ajustar nossa economia. Nessa Assembléia, precisamos acertar coisas de nossas saídas e entradas. Eucaristia e economia são mesmo duas coisas muito diferentes. Parece. Será?

Vem aí o relatório financeiro. São números. Fala daquilo que desembolsamos para as atividades da Igreja.

Vem aí eleições. São votos. Jogam com nossas simpatias por pessoas que se candidatam. Tem a ver com candidatos, pois sem eles e elas não haveria nem mesmo eleição.

É, estamos querendo que a casa esteja bem organizada. Não que estivesse desorganizada. Não, nada de críticas a quem deixa seus cargos. Muito pelo contrário. Só tenho elogios. Pois, muito se empenharam. Suaram mesmo para manter as coisas da Igreja. Estamos a por a casa em ordem, porque aí vem novos tempos. Vem novos anos que queremos bem aproveitar. Vem novas visitas, por assim dizer, e daí que é preciso arrumar a mesa, bem arrumadinha.

E isso é economia. É por em ordem a casa. Pois, em grego, oikos é a casa, e nomia vem a ser a organização, as ‘leis’ da ‘casa’. Então, somos hoje pela manhã economistas.

Mas, escuta, isso não seria celebração? Não seria eucaristia? Muitos dirão que não. Aliás, a maioria vai falar que reza é uma coisa, dinheiro bem outra. Vai achar que ‘celebrando’ não se está ‘economizando’.

E, enquanto for assim, vai ser mesmo difícil! Não vai ter nem graça! Vai ter só desgraça.

E o pior não é isso de ficar separando. Já isso complica. Você sabe: não dá de ser um sujeito em casa e outro fora dela. Se você for assim rachado pelo meio, vira doente. Sim, não dá de ter uma cara na igreja, na reza, e outra lá no emprego. Sua cara é sempre a mesma. E se começar a ficar dividida, começa a dar problema. O pessoal vai dizer que você está meio assim misturado na cabeça.

Coisa que não liga com coisa, é mesmo coisa de louco. Daí porque, já de saída, economia e eucaristia são folhas da mesma árvore. É farinha do mesmo saco.

Tá na cara que é assim. Ao celebrar, na eucaristia, partimos o pão. Partilhamos comida. Cada qual um pedacinho. Já imaginou, se um come tudo? Seria uma eucaristia meio que esquisita. Seria ridículo, se o pastor sozinho se adonasse do pão, comesse-o inteirinho, e, depois, convidasse: ‘venham que tudo está preparado’. Haveria risada. Haveria protesto. Diriam: ‘o pastor não tá bem ligado’. Viu: eucaristia é um modo da economia. Se não comemos o pão, assim na partilha, vai ser o fim.

Mas, isso até que nem é que não é o mais complicado. Basta ler um pouco aí pela Bíblia e você já vê que as coisas de Deus andam misturadas mesmo nas coisas de vida da gente. Você logo vai perceber que eucaristia e economia foram um belo parzinho.

Complica mesmo, quando a gente se dá conta das contas de Deus, de sua economia. Seu tema é o pão. Que coisa tão simples! Ele, Deus, está sempre de olho é mesmo nesse pão, no pãozinho: é pão na eucaristia. É pão no Pai Nosso. É pão nas multiplicações. É pão e pão. Até parece coisa meio que primitiva essa economia de Deus.

Irrita. Ah, atrapalha porque essa ‘coisinha’ do pãozinho não dá assunto para o “momento econômico” ou para o “caderno de economia”. Lá não fala de pão. Fala mesmo é de bolsa e de dólar e dessas grandes coisas. Pão, meu irmão, lá não tem.

E, aí, complica. Irrita. Agita.

Na favela, aí pertinho da Igreja, se luta pelo pão. Ah, se luta, e como. Todo dia batem à nossa porta. Pão é o que mais se quer. É o grito pela eucaristia, pela economia de Deus, essa economia das pequenas coisas que são, em verdade, as grandes.

Enfim, Deus é mesmo economista. É que Ele é economista das pequenas coisas.

“O pão nosso de cada dia dá-nos hoje.” Isso é economia? Isso é oração? Isso é eucaristia? Diga-me!

Deus, tu que nos amas pelo pão de cada dia, dá que todos o tenham. Abre nossos corações e nossas mãos para que não só queiramos pão para nós, em nossa casa, mas em cada casa. Fortalece nossas vidas para que não só queiramos dedicar-nos a nós mesmos. Em Jesus, Mem.

“E Jesus replicou: ‘Quantos Paes tendes? Ide ver!’ E tendo-se informado, lhe disseram: ‘Cinco pães e dois peixes’. Então, lhes mandou que os fizessem todos acomodar-se em grupos, sobre a verde relva; e se sentaram no chão em grupos de cem e de cinqüenta.”
(Marcos 6,38-40- tradução dos Irmãos de Taizé)


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