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  D I C A ...D O ...M Ê S
  Anotações sobre a Teologia da Libertação - 2007
....................Carta a um amigo

Milton Schwantes
 

Hoje, é realmente o dia para fazer anotações sobre a Teologia da Libertação, portanto sobre a identidade latino-americana. Afinal, 12 de outubro de 1592 é data de conquista de Cristóvão Colombo em terras latino-americanas, e, com isso, também brasileiras. Mas, este também é a data de Nossa Senhora Aparecida, Maria negra, devotada no Brasil. As duas datas nos indicam dilemas de nossa identidade: conquistados, mas também resistentes à conquista. Afinal, Nossa Senhora Aparecida provém do fundo das águas do Rio Paraíba da Sul, brota, pois, das histórias brasileiras, das histórias dos negros e das negras escravas. Nossa esperança, no fundo é, pois, africana. E se lermos Nossa Senhora Aparecida nas perspectivas de Nossa Senhora de Guadalupe (México) veremos marcas índias nas cores negras. Pelo visto, nossa identidade ainda não está concluída. Estamos em meio aos processos históricos de poder dizer quem, a rigor, somos.

Neste sentido, Teologia da Libertação não só é um encontro com as raízes sociais no cristianismo, mas é também um movimento cultural de encontro com nossas raízes passadas e futuras. Por um lado, um movimento como a Teologia da Libertação é um evento histórico determinado, marcado para surgir e sumir, mas também está configurado para ser parte de nós. É difícil dizer o que é parte de nós, se é o obelisco italiano no Parque do Ibirapuera, aqui em São Paulo, ou se são os movimentos de música popular, negra e nordestina nas insondáveis periferias paulistanas. O obelisco como que nos chama para a Europa, a viver de costas para a América Latina, a buscar a saída pelo aeroporto. Afinal, neste ano de 2007, a maior crise para a classe média paulistana justamente foi a crise do aeroporto, porque é por ele que se acha a saída, a saída de São Paulo, e, em especial, a saída do Brasil para a Europa. Pois, afinal, aqui só se vive provisoriamente, até que se possa voltar à Europa ou aprofundar-se na cultura de Miami. Aqui não se é, só se é na perspectiva do aeroporto! Na hora que os aeroportos entram em crise, os ricos daqui não suportam o aparente sufoco ao qual são submetidos. Precisam da certeza de saída, de aeroporto. Sim, este nosso país e povo são complexos. Sua teologia é complexa.


1 – É o fim da Teologia da Libertação?!

Sua morte está anunciada desde a queda do muro de Berlim, em 1989. Desde então já não faria sentido, porque suas teorias teriam sido marxista, e teriam sido superadas pela queda do muro.

Estive na DDR, na assim chamada Alemanha comunista (República Democrática Alemã), em 1987, no 2º semestre. Passei por todo país. Falei com pessoas de todo tipo, gente do governo de então, e, em especial, estive com comunidades cristãs.

As críticas que me eram feitas provinham de dois lados. As pessoas das igrejas não queriam saber de Teologia da Libertação na América Latina, porque elas queriam ver-se livres do estado. Numa dessas noites, em Leipzig, estive em um prédio abandonado, em algum quarto completamente fechado e vedado, em uma reunião histórica para mim. Era agosto de 1987. Juntos estavam jovens da igreja, jovens do partido comunista da cidade, e dissidentes russos do então partido comunista oficial da União Soviética. Naquela peça escura, passamos a noite inteira em debate e em troca de opinião. Aquele foi, para mim, um encontro impactante, algo de contornos apocalípticos. Era a DDR daqueles tempos! A tese dos visitantes de Moscou era que não havia reais forças democráticas que pudessem facilitar uma transição verdadeiramente democrática na sociedade russa e nas demais repúblicas do leste. Concluía-se o mesmo para a DDR. Na oportunidade, em nada, se vislumbrava as igrejas na DDR em seu importante papel na transição democrática. Ela não merecia ser analisada em suas funções, nem mesmo por quem dela participava. - Na mesma visita à DDR, tive a chance de me reunir, também de modo informal e de maneira meio ‘clandestina’, com dirigentes do partido comunista da DDR. Um dos participantes era o ideólogo e chefe do partido em Dresden, gente de dentro do poder, de sua escala mais alta. Pois, nos diálogos que tivemos no apartamento de uma senhora de bastante idade que merecia confiança de comunistas e de cristãos, não houve acordo nenhum. Para a liderança comunista, as igrejas não levavam chance alguma na constituição e no tecido social, nem na DDR e nem na América Latina. Segundo “eles”, crer em Deus era atrapalhar a vida, era idêntico a confundir-se sobre a realidade própria da existência. Enfim, separamo-nos em profundo desacordo com a chefia ideológica do partido na DDR. – Sabemos dos acontecimentos do segundo semestre de 1989, e do relevante papel que igrejas, pastoras e pastores e comunidades tiveram no encaminhamento dos destinos da DDR. Daí tomo a liberdade de deduzir que igrejas têm, às vezes, grande relevância nos encaminhamentos da vida e nos próprios processos sociais, mais importantes que tendemos a considerar-nos. É bom termos consciência disso. O que se faz nas igrejas é de grande relevância para os processos sociais. Por isso, justamente a pergunta pela Teologia da Libertação tem a importância que tem.

De todo modo, há que considerar que a Teologia da Libertação não é propriamente parte dos caminhos ocidentais, das culturas euro-centradas. Ela é também isso. É filha do ocidente. Basta ler Gustavo Gutiérrez e suas intermináveis citações da teologia da cultura européia, para saber que a Teologia da Libertação mantém profundos vínculos com a cultura européia. Mas, isso não é tudo. Esta teologia libertária está ancorada nas raízes latino-americanas, em suas culturas e suas nações. Quando cristãos desvendaram para si o sentido da Americana Latina, quando o fizeram na própria América Latina, acabaram tendo que fazê-lo em língua estranha, mediante citações infindáveis da bibliografia européia. Para começar a comprometer-se com a América Latina as igrejas daqui tiveram que recorrer a seu berço, à Europa, para poder dizer de seu comprometimento com a América Latina. Este é o sentido cultural do livro de Gustavo Gutiérrez sobre a Teologia da Libertação. Afinal, naqueles anos dos sessenta, Gustavo Gutiérrez era assessor de jovens acadêmicos, era assessor teológico do movimento estudantil universitário. E para dizer em termos universitários a latino-americanos que os pobres eram o tema de nosso continente, teve que ‘expressá-lo’, por assim dizer, em ‘francês’, para que as pessoas intelectualizadas daqui entendessem que o assunto era sério. Isso que estou dizendo é uma profunda contradição, mas é esta a contradição que vivemos: nosso pensar sendo daqui é aqui estrangeiro. Se ele (o pensar) fosse daqui teria que amar portugueses, índios e negros. E isso é bonito ao se estudar messianismo. samba ou culinária brasileira, mas não para pensar. Afinal, ‘em nós’ o ato de pensar faz-se um ato estrangeiro. A Teologia da Libertação tenta alocar nossa ética em meio a nossos povos mediante o uso da linguagem estrangeira. É, ao menos, o que podemos dizer para os começos da Teologia da Libertação. A partir do final dos anos setenta, novos ares se impõem, os do verdadeiramente extraordinário livro de Gustavo Gutiérrez A força histórica dos pobres, e os dos decisivos escritos de Leonardo Boff Igreja – Carisma e Poder. Estes livros já respiram os ares locais, cada vez mais e com maior intensidade.

Portanto, a Teologia da Libertação se encontra na tensão entre feijão e sonho. (Este é o título de um romance maravilhoso, escrito por um dos membros da família presbiteriana dos Lessa.) Por um lado, a Teologia da Libertação acertou o “feijão”, a vida real e cotidiana dos pobres que, a cada dia, têm seu gosto principal pelo feijão, aquilo que alimenta para trabalhar e viver. Se falta feijão, falta tudo! E, por outro lado, estamos no sonho, na libertação, na saída desta miséria coletiva das grandes maiorias latino-americanas. Somos gente que busca a companhia de Dom Manoel, aquele rei português que no século 15 desapareceu na luta dos portugueses contra os mouros muçulmanos no norte da África e por cuja volta triunfal e messiânica espera toda nossa cultura. Eis, nosso sonho! Sonhadores foram nossos lutadores destemidos, como Antonio Conselheiro, como José Maria (no Contestado catarinense), como Jacobina Maurer dos ‘muckers’ do sul do Brasil. Todos estes e seus grupos são andarilhos pelo mundo novo, como o é nosso carnaval e como o é nossa política, quando ela se torna comovedora. Não votamos em candidatos partidários, mas, em eleições, tendemos ir em busca da era messiânica. Estes não são os sonhos de nossas elites. Seus sonhos são os aeroportos! Os sonhos populares estão em Canudos.

Eis nosso desencontro nacional. E, aí, a Teologia da Libertação tomou partido e optou. Nos anos sessenta e setenta, esta opção era mais fácil de fazer que hoje. Naqueles anos, a América Latina era possuída por militares que destituíam os governos eleitos por golpes de estado. Fecharam os canais de expressão para todos, para os pobres que jamais tiveram expressão política decisiva em nosso continente, mas estranhamente também fecharam os canais de expressão para os filhos dos setores mais abastados da sociedade. Quem fazia opinião, estudantes e jornalistas, foram cerceados, presos e assassinados, num país latino-americano mais que no outro, mas foram eliminados em massa no Chile e na Argentina. Os militares voltaram-se, pois, contra seus próprios aliados normais, os filhos de gente rica e/ou tradicional. Mas, como militares perderam esta chance de conjunção social. Por isso, a “opção preferencial pelos pobres” tornou-se tão facilmente inteligível. Não havia saída que não fosse pelas sacristias, pelas igrejas. Ao tentarem impor a repressão, os militares ajudaram a constituir um adversário ainda mais poderoso, o que se forjou entre intelectuais e pobres, através das igrejas. Lógico, as igrejas queriam este novo acordo. Já não queriam um acordo com as elites, depois do Vaticano II e dentro de seu clima. Queriam um acordo com o povo latino-americano, com os pobres, em Medellín e depois desta Conferência, até hoje, como se vê nos documentos de Aparecida, em maio do presente ano. O episcopado católico ainda não encerrou o ciclo de seu enlace com os setores pobres das sociedades latino-americanas. Portanto, a Teologia da Libertação continua em pleno vigor, em renovação, em novas versões, apesar de tudo, apesar das recentes perseguições vaticanas contra Juan Sobrino. Ora, a opção pelos pobres já é parte da identidade católica, mas também é parte de sua necessidade, pois sem amor aos pobres estes já não terão amor pela igreja católica. É que hoje se apresentam novas opções que buscam e necessitam da adesão dos pobres, dentre movimentos pentecostais. Por mais que a opção pelos pobres tiver sido idéia política nos anos sessenta (e ter-se-ia que verificar que a opção tem raízes só em convicções políticas), em todo caso, no presente momento, não optar pelos pobres na América Latina seria tolice, pois até a mídia televisiva se vê obrigada a isso. (A Rede Globo tem jornalistas que elaboram programas a partir de pobres na América Latina e na África.)

Enfim, estamos longe do fim da Teologia da Libertação.


2 – Os meio ricos e os pobres – um desafio na Teologia da Libertação

Há um novo fenômeno social que vai complicando a Teologia da Libertação. Este fator não era tão decisivo nos anos sessenta e setenta, pelo contrário, naquelas décadas ele se formatava de outra maneira.

O problema são os setores médios. Acima já ressaltei que nos anos de berço da Teologia da Libertação, nos sessenta e nos setenta do século 20, estes setores médios e inclusive ricos também tiveram negados seus direitos políticos, Latino América afora. Os direitos junto aos pobres se tornaram hóspedes dos direitos humanos. (Lembro aqui uma publicação dos direitos humanos como direitos dos pobres pela Arquidiocese de São Paulo.) A situação, hoje, não é mais a mesma. Em dois aspectos, por exemplo, surgiram mudanças expressivas: por um lado, as sociedades latino-americanas deixaram de ter regimes militares. Aliás, os militares não têm bom conceito aqui no Brasil, e nem relevância política. Poucas vezes em nossa história nossa sociedade foi tão hegemonicamente civil. Temos crises - sim, significativas crises - em nossas representações políticas. No Brasil, cassamos um presidente eleito pelo voto direto. E, tudo isso, foi e é obra da sociedade civil. Por conseguinte, já nem se pensa e nem se sonha que seria necessário ir à igreja ou querer abrigar-se nela para poder ser politicamente ativo. Nos anos sessenta e setenta, esta era uma realidade de muitos agentes de pastoral e de colaboradores nas igrejas: não havia outro espaço na sociedade. Hoje, isso não é necessário. É verdade, no contexto das igrejas continua a haver muito esforço político, mas não porque não houvesse outro espaço. Muito pelo contrário. Os partidos e os sindicatos oferecem plenas condições de nos expressarmos através deles. Não há, pois, necessidade de recorrer às igrejas. Quem atua na igreja, seja como clérigo seja como leigo, assim procede porque a igreja respectiva lhe agrada, porque entende que a fé está em íntima relação com a justiça e o amor. A igreja se tornou, pois, mais igrejeira. Isso pode tender a um certo refluxo das tensões sociais como assunto religioso. A política fez-se mais leiga; não carece de igrejas e de seus espaços. - Por outro lado, e aí realmente houve profunda mudança, os setores médios da sociedade se afastam cada dia mais das intuições eclesiásticas em apoiar governos populares. Os setores médios querem a si mesmos, com muita convicção. Após as eleições presidenciais, há um ano atrás, tentei comentar o resultado eleitoral, tão favorável a Lula, na sala de aula, no último ano de graduação de um curso de teologia; os alunos eram majoritariamente adultos, profissionais de várias áreas que haviam optado pelo estudo da teologia para aprimorar sua dedicação à sua respectiva igreja. Pois, na sala de aula, comecei a comentar os resultados da eleição que deram praticamente 70% dos votos a Lula. Mas não consegui nem concluir meu comentário, pois, como eu jamais havia experimentado em minha vida, a meu comentário se opuseram vários alunos e alunas com ímpeto, em tom de protesto e indignação e até com fúria, totalmente contrários ao resultado das eleições, pois, assim diziam, “este Lula só dá dinheiro aos pobres”, e nós, classe média, temos que trabalhar, etc. e tal. Tive duas horas de gritarias na sala de aula de teologia, de protesto feroz contra o governo popular de Lula. Para mim, um susto! Não imaginava ter que ouvir tais ‘argumentos’ - aliás, gritarias - de teólogas e teólogos. Obviamente já não estamos nos anos sessenta ou setenta. Os tempos são outros.

Há que acrescentar a isso que nos países latino-americanos os governos populares se impõem, por toda parte. Não estamos em governanças militares, mas em meio aos mais populares governos que já existiram na América Latina. Parcelas significativas dos orçamentos nacionais são aplicadas para pobres a ponto de já ser significativa a melhora das condições da população. É verdade, ainda falta muito, mas também é verdade que cada qual vai tendo experiências com governantes que aderem às necessidades das maiorias empobrecidas, algo jamais visto entre nós. No Brasil, os novos valores do salário mínimo são decisivos; seu valor ainda não é suficiente, mas subimos de U$ 60 para U$ 240, em poucos anos. Além disso, entrementes 20 bilhões de reais são investidos em alimento para os mais pobres, através de entrega de dinheiro (não através de programas de alimentação!)! Este tipo de ‘devoção’ do estado aos mais pobres é um fenômeno encantador. Certamente facilita a que oremos o Pai Nosso: “o pão nosso de cada dia dá-nos, hoje”. A universalização deste pão é uma meta tangível, em nossas terras. Não podemos deixar de ler esta realidade de modo teológico, ainda que muito teólogo tenha lá suas dificuldades em avaliar positivamente por medo de que lhe poderia vir a faltar o alimento, se os pobres consumirem demais, como um desses teólogos da ignorância me dizia na sala de aula.

O testemunho em prol da Teologia da Libertação tornou-se, pois, menos óbvio, menos universal, não menos importante ou menos urgente. Pois, há mudanças para melhor na América Latina, mas isso poderia ser só um momento, uma transição. Há esperança concreta, mas e amanhã...


3 – Destruímos nosso futuro

O movimento modernista, no Brasil expresso principalmente pelas artes plásticas e pela literatura, dizia, nos anos 20 do século 20, que somos autofágicos. Penso que nisso há razão de ser. Tendemos a devorar nosso próprio futuro, nossas esperanças. Pois, há entre nós, entre os setores médios da sociedade, a suspeita de que amanhã já não poderíamos suportar viver por aqui. Arriscamos começar com novos empreendimentos, mas dificilmente os sustentamos. Ou, em outros termos, devoramos nossas esperanças, deixamo-las cair no vazio.

É que nossa história não tem continuidade, ou, ao menos, tende a não ter continuidade. Ela se esgota em fatias. Partes de nossa história são interessantes, mas outras, em seguida, são podres. É como se comesses uma laranja, e um de seus gomos estivesse estragado/pobre e outro gomo, ao lado, estivesse, maravilhosamente, doce, e assim em seqüência: um gomo bom outro podre. O que nos falta em nossa história é a continuidade. Pois, constantemente, somos reflexo da história européia e estado-unidense. Somos anexo à história de outros. Somos um vagão em trem alheio. Somos pátio dos fundos, quintal detrás de casas bonitas. No quintal, nos pátios fica jogado o que não se quer na casa. Somos mais ou menos desse jeito.

Neste pátio dos fundos, há coisa interessante, mas não decisiva. É nossa beleza e nossa tragédia. Somos lindos no futebol, mas não conseguimos sair da miséria em termos econômicos, ao menos nestes 500 anos que passaram. Mas, nesta história passada, tivemos momentos muito bonitos, muito libertadores, muito fascinantes. Mas tudo foram pedaços, parcelas, nada inteiro e contínuo. Nossos avanços não são proporcionais a nós, mas nos são inversamente proporcionais.

Este é nosso ‘destino’, é nossa sina, como dizem nossas poesias. Mas justamente esta sina é a ruína continuada. Há como encontrar uma saída destra tragédia que se chama de dependência interminável? Estes últimos 500 anos deram razão ao marxismo: não houve saída; todos fomos mantidos nos quintais, nos pátios dos fundos na ignorância e pobreza. Mas a história é aberta para o novo. O novo seria o de agora? Pois, é possível! Dentro do horizonte de minha vida diria que sim: já não haverá como recuar. Mas, não sei, prefiro também esperar para ver e, em especial, participar junto com outras pessoas de movimentos que impeçam que voltemos para trás.

Enfim, a tragédia de Sísifo chegará ao fim!?


4 – Por onde estamos, ‘carregando as pedras’?

Podem ser anotadas algumas características dos dias atuais. E elas apontam em direção à inovação da Teologia da Libertação bem como para a sua continuidade. É óbvio que, hoje, trinta anos após o livro de Gustavo Gutiérrez temos que falar deste jeito do movimento em questão, porque, depois de trinta anos todo movimento necessita de uma ou mais inovações.

4.1 – O protestantismo

O protestantismo continua minoria. Mas, a cada dia que passa, seus quadros aumentam, suas igrejas crescem, seu debate interno se qualifica. Por isso, faz-se necessário perguntar por sua presença no presente e no futuro, dentro deste quadro de formação da teologia latino-americana.

E aí me lembro da Teologia da Revolução, deste conceito marcado por Richard Shaull, nos anos cinqüenta e sessenta, em espaços protestantes. E, até hoje, este movimento não está encerrado e nem esquecido. Entrementes, conheço diversos teólogos e teólogas protestantes que recorrem ao acervo de linguagem e análise da Teologia da Revolução. A publicação De dentro do furacão, com ensaios de Richard Shaull, continua a receber bons ecos.

Os carismatismos por certo já se alastraram pelos poros das igrejas protestantes. Mas as convivências de uma teologia socialmente crítica com certo tipo de carismatismo são possíveis. Pois, este pode ser reacionário, em termos políticos, como haveria que constatar entre os republicanos norte-americanos. Mas, verdade seja dita, Jacobina Maurer, Antonio Conselheiro e, não por último, Thomas Münzer têm o carismatismo como base comum. Situaram-no dentro da história com vigor, força e luta. Por isso, não há que ser ingênuo e pensar que a teologia política tende a ser um desdobramento da teologia liberal; não, ela também é um desdobramento do vigor do Espírito, assim já o dizia o pesquisador do pentecostalismo chileno dos anos cinqüenta e sessenta (Lalive).

Não poderia encerrar um item sobre a questão protestante como tema da Teologia da Libertação sem lembrar que o livro decisivo de Leonardo Boff foi exatamente intitulado Carisma e poder. Nossos tempos, são, nas igrejas, de carismas. Pelo poder as igrejas pouco são. Carisma é tema comum, ecumênico. É o assunto das comunidades.

4.2 – As comunidades

A dificuldade principal de uma ampliação da Teologia da Libertação em meio ao protestantismo justamente reside em sua dificuldade de ser movimento de comunidades. As igrejas protestantes querem ser comunidade, sem que informalizem sua compreensão de dons. Sem dons não haverá mudança. Este é o impasse maior. Em não havendo ‘grupos-tarefa’, organização social dos dons não haverá igreja profética, nem comunidade que vai tomando iniciativas por sua conta. O mundo protestante é pastoral. Pastor ou pastora cuidam de tudo, têm que saber de tudo, senão a comunidade não se satisfaz. Na medida em que existirem comunidades dispostas a tomarem suas iniciativas autônomas na sociedade, nesta mesma medida crescerá a profecia e o movimento comunitário dentro da comunidade (veja que contradição!). Por isso, há sérios limites nas igrejas protestantes; elas têm dificuldades de lidar com a autonomia de seu povo. Seus pastores são maravilhosos, mas tendem a ser também seus túmulos.

No geral, o que são os dons? Ora, são tarefas e empreendimentos internos à comunidade. Mas dom é o amor. A rigor não são tarefas. Em especial, não são exclusivamente tarefas intra-comunitárias. São mesmo amor, ações em favor de necessitadas e necessitados.

Quanto às comunidades, nada mudou no mundo católico. Ela continua a ser uma igreja sem clero! Mas não lhe faltam comunidades, grupos e círculos. Ora, sem movimento de comunidades não há a rigor Teologia da Libertação, ao menos não depois de aproximadamente 1978. Nos inícios, a Teologia da Libertação ainda não era, em seu todo, fruto de encontros de comunidades, mas depois de seus primeiros desdobramentos ela se fixou, se agarrou, se mesclou à realidade comunitária. Assim o descreve Gustavo Gutiérrez em seu A força história dos pobres, assim o encontramos em Massas e minorias. Assim o celebram os cânticos cantados. A pergunta decisiva não é, pois, se a Teologia da Libertação continua, mas se as comunidades continuam. A televisão pode ‘substituir’ o acesso das igrejas às pessoas, mas não como isso se dá no âmbito da comunidade. Nem mesmo cânticos animados, ou palmas de entusiasmo podem efetivar entre as pessoas o que suas próprias palavras podem alcançar. É verdade, o carismatismo é participativo, mas só mais ou menos. Pois, palmas e saltos e movimentos são muito interessantes, mas na falta da palavra a consciência não cresce. Só tende a imitar. Por isso, o movimento das comunidades continua a ser o espaço de evangelização próprio, específico, decisivo.

É que a comunidade constitui espaço da ação. Se faltar ação, falta o que é propriamente típico da igreja. Os encontros de igreja carecem justamente do espaço da ação. Você vai à igreja para a ela voltar. Mas o que ela propõe que aconteça? Esta questão as igrejas não vão solucionar, porque elas não são encontros para a ação, senão reuniões que nelas mesmas se esgotam. Contudo, fé sem ação expressa morte! O que a era constantiniana fez da fé em Jesus certamente cabe em templos; mas o que Jesus quis nem mesmo necessita de templos!

Por isso os sacramentos tendem a perder a forma que têm. Tornaram-se atos sem ações; neles mesmos viraram contradição. O batismo é, sem dúvida, testemunho precioso em relação à defesa das crianças, mas sem ação deixam de ser luta por crianças e por adultos e se tornam ‘sacramento’. Mas sacramento sem ação em nada contribui na identidade cristã. Torna-se hóstia. Pão que vira hóstia tende a perder a conexão com as lutas da vida. Pois, hóstia deseja ser parte do “pão nosso de cada dia”. E este pão nosso é eminentemente social. Pressupõe lutas sociais. Ora, igrejas dificilmente vão à luta. Quem vai à luta são comunidades. São quem vai eucaristicamente ou de modo batismal à luta pelos sinais de Deus na vida. Sem comunidade – a fé em Jesus não tem saída.

Neste sentido, a Teologia da Libertação está longe de se concluir.

4.3 – A Bíblia

Pouco há de novo na academia teológica quando se trata de Bíblia. Ouço muitas frases comuns pelos corredores, provenientes das salas acadêmicas. Pois, ao lidar-se com a Bíblia a tendência continua a de torná-la ao máximo complicada. Não me parece que o estudo da teologia tenha conseguido inovar de tal forma no uso da Bíblia que o que se estuda realmente esteja a serviço das lutas do povo latino-americano. A Bíblia em estudo continua estrangeira ao solo daqui. Vem empacotada com cordas e correntes da invasão conquistadora sem haver tocado suficientemente o chão e o pó daqui.

Há exceções, é verdade. Mas, no geral, de acordo aos livros traduzidos, estuda-se aqui o que é europeu. Pior, estuda-se aqui o que até na Europa já está superado. Vale neste sentido: estamos no fundo do terreno, onde se joga o lixo da casa. Reviramos o lixo dos ‘senhores’. Estudamos a sobra. Ora, nossa bibliografia bíblica é, quase toda, ultrapassada; está defasada por anos do que na Europa se estuda, mas desejamos que a Europa continue nosso padrão.

Nem sempre é assim, mas se passares pelas faculdades de teologia me dirás certamente que no geral é assim. A Bíblia das faculdades vai longe de vir a ser Bíblia do povo sofrido latino-americano. Neste sentido, o gesto de Ataualpa, ao lançar fora a Bíblia, aos pés de Pizarro, continua a ser emblemático. Ou a Bíblia traz as lutas da vida à consciência ou ela é enfeite antiquado.

Há iniciativas - lindas iniciativas - que trazem a Bíblia ao meio da vida. Elas até são muitas. Lógico, poderiam e teriam que ser muito mais, mas alegremo-nos pelo que já temos. As igrejas por aqui suspeitam que a Bíblia não é o que por aí dela se diz; ela é mais radical em seu desejo de formatar a estas mesmas igrejas. Esta suspeita se implantou entre nós. Há que mantê-la no ar, para que instigue as igrejas, dia a dia, domingo após domingo. O evangelho, do qual as igrejas falam, tem que ser o bíblico, aliás as próprias igrejas desejam que seja assim. Cabe a cada um e a cada uma de nós reforçar esta crise, pois o bíblico pede passagem.

Ora, o que é bíblico pede por muitas palavras de muitas pessoas. Não é possível dizê-lo no singular, por um bom pregador. Um bom pregador é um bom pregador, mas lá por isso não dá passagem - intensiva - ao que é bíblico. Só o conjunto, os grupos de comunidade é que são capazes de expressar o sentido da Escritura.

O movimento bíblico brasileiro e latino-americano vem dando belos passos nesta direção. Em parte isso se deve a seu caráter leigo. Quanto mais leigo permanecer o movimento bíblico, mais desafiador será. Em meio a este povo leigo de biblistas, as mulheres vêm tendo um papel todo especial. Isso igualmente indica que a Bíblia assume contornos em novos corpos. Sem isso, a Bíblia não fala (veja 1Corintios 1!).

As igrejas carecem, por aqui, de uma vigorosa renovação bíblica. Penso que elas, em parte, estão em meio a ela.

4.4 – A questão índia

Não há teologia latino-americana que não seja índia e negra. Por isso, sua dimensão acadêmica não basta, porque a academia representa um corte, um perfil branco na sociedade e do saber. Às vezes tal perfil é parte de nossa própria história e temos que conviver com ele, porque assim fomos feitos e assim somos. O acesso à escola teológica chegou a estar negado aos descendentes de escravos. E, mesmo quando liberado, o acesso às faculdades, são poucos os descendentes de nações indígenas e de filhas e filhos dos povos negros que têm acesso à formação teológica. Temos muito a caminhar nestes caminhos. A Teologia da Libertação tal como a conhecemos desde os anos sessenta e setenta é, tão somente, um primeiro momento do despertar latino-americano. Ao delinear a contribuição indígena, Gustavo Gutiérrez certamente foi claramente insuficiente. E a contribuição negra ainda nem de longe começou a se extravasar pela Teologia da Libertação.

Ainda estamos nos começos de caminhos que havemos de trilhar, caminhos difíceis. Difíceis porque não se trata somente de uma ou de outra orientação teológica, mas de um diálogo muito mais profundo. Afinal, índias e índios, negras e negros ainda não foram ouvidos em suas experiências religiosas. E sem estas experiências religiosas não haverá Teologia da Libertação na América Latina. Estamos tão somente nos começos destes caminhos.

Estes caminhos ainda não foram conscientemente encaminhados. São tarefas que temos pela frente, em longos e tranqüilos diálogos. No nível da prática e de certa dose de ‘inconsciência’, estão funcionando há tempos. Mas, na esfera do diálogo ainda estão por serem realizados.

4.5 – Ecumenismo

Enfim, o que temos pela frente é o ecumenismo. A Teologia da Libertação não começou anti-ecumênica. É verdade. Mas também não teve inícios marcadamente ecumênicos. Nos caminhos, sua ecumenicidade cresceu. Ampliou-se e se vai tornando uma de suas marcas.

Vem-se fazendo, por aí, uma diferença marcante entre ecumenismo e macro-ecumenismo. O ecumenismo, aquele que geralmente é endossado, é o ecumenismo entre igrejas. O assim chamado macro-ecumenismo tende a ser inscrito em outros contornos. Pois, diz-se que o macro-ecumenismo teria outras premissas. Pois, sabes, formalmente falando, até se poderia manter esta diferenciação. Mas ele de pouco ajuda. Na América Latina, nem mesmo aborda as questões decisivas. Pois, é o assim chamado ‘macro-ecumenismo’ que aborda o que importa: o lugar de cosmovisões indígenas e afro-americanas em nosso horizonte teológico. E, afinal, ecumenismo entre cristãos é algo, se me permitem, de tal modo óbvio que não carece de grandes debates. Pior, este ecumenismo inter-cristão mantém de fora aquele que propriamente é o problema. Ora, cristãos e cristianismo foram, por aqui, partes da opressão, por séculos. Não basta, pois, que nos reunamos para acertar-nos, se sempre estivemos acertados, em nosso continente contra índias, índios, negras e negros. Aliás, continuamos a ter esta marca principal: cristãos são os que esquecem e ignoram seus parceiros de caminho, aqueles e aquelas que, por nós, foram lançados nas sarjetas e vão sendo perseguidos até hoje, praticantes das religiões indígenas e africanas. Nosso tema latino-americano é o do assim chamado ‘macro-ecumenismo’, por isso designo a este preferencialmente de ecumenismo.

A rigor, a fé em Jesus, nas tradições de Moisés e dos profetas, haveria que ser libertária. Haveria que ser... Pois, senão deixa de ser o que é, o que foi, o testemunho das ações de Deus em prol de um pobre camponês executado na cruz e de hebreus escravos e escravas, perseguidos pelo senhorio faraônico. Pois, justamente, esta religião formatada em contornos tão claramente de libertação, a que deu origem à Teologia da Libertação, mostrou-se nos processos históricos de nosso continente vorazmente opressora. E as religiões indígenas e africanas assumiram importantes contornos libertários e integradores. Há séculos isso vem sendo identificado desse modo. Pero Vaz de Caminha chega a desrecomendar que o imperador português envie missionários para cá, para as terras em ‘descobrimento’, porque as pessoas que aqui viviam, segundo Pero Vaz, já eram cristãs, inclusive haviam participado com cantorias na primeira missa. Pero Vaz já intuía que nada de bom se passar com os indígenas através das missões e da presença portuguesa (e espanhola). Afinal, o 16º século foi de um voraz genocídio contra índias e índios. Em todo caso, em relação a negros e índios não há que ter postura de ensino mas de aprendizagem. Não há que missionar, mas modestamente perguntar: com foi que vocês conseguiram suportar genocídio e escravidão em suas orações e com seu Deus? O respeito a negras e índios será, em nosso contexto, propriamente a Teologia da Libertação. Bem que Juan Luis Segundo já vislumbrava que Teologia da Libertação haveria quer ser libertação da teologia!

“El Diós de ellos es el oro!” Assim se dizia no Peru sobre conquistadores e sua religião. Desde Constantino é assim. Os mosteiros já o diziam, no oriente e no ocidente. Aqui os ‘mosteiros’ daqueles primeiros séculos de acomodação crista aos do império são negras e índias, negros e índios. Temo que ainda nem começamos a trabalhar este assunto, nas igrejas.


Certamente, temos mais outros assuntos pela frente. Neste meu item quatro restrinjo-me a estes cinco temas exemplares. Outros enfoques que se fazem necessários talvez poderiam ser medidos e desdobrados no horizonte daquilo que ficou refletido nos assuntos explicitados.

Desejo, Guilherme, que vocês tenham muita alegria em seus estudos. E obrigado que vocês se dedicam a coisas nossas, de nosso contexto. Permaneço à disposição.

Milton Schwantes
rua Camilo José
Vila Dom Pedro I – Alto do Ipiranga
São Paulo/SP
04125-140
Brasil
milton.schwantes@metodista.br
tel. (55-11) 5068.0170
fax (55-11) 4366.5813

em 12-10-2007

 

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