Hoje,
é realmente o dia para fazer anotações
sobre a Teologia da Libertação,
portanto sobre a identidade latino-americana.
Afinal, 12 de outubro de 1592 é data
de conquista de Cristóvão Colombo
em terras latino-americanas, e, com isso, também
brasileiras. Mas, este também é
a data de Nossa Senhora Aparecida, Maria negra,
devotada no Brasil. As duas datas nos indicam
dilemas de nossa identidade: conquistados, mas
também resistentes à conquista.
Afinal, Nossa Senhora Aparecida provém
do fundo das águas do Rio Paraíba
da Sul, brota, pois, das histórias brasileiras,
das histórias dos negros e das negras
escravas. Nossa esperança, no fundo é,
pois, africana. E se lermos Nossa Senhora Aparecida
nas perspectivas de Nossa Senhora de Guadalupe
(México) veremos marcas índias
nas cores negras. Pelo visto, nossa identidade
ainda não está concluída.
Estamos em meio aos processos históricos
de poder dizer quem, a rigor, somos.
Neste
sentido, Teologia da Libertação
não só é um encontro com
as raízes sociais no cristianismo, mas
é também um movimento cultural
de encontro com nossas raízes passadas
e futuras. Por um lado, um movimento como a
Teologia da Libertação é
um evento histórico determinado, marcado
para surgir e sumir, mas também está
configurado para ser parte de nós. É
difícil dizer o que é parte de
nós, se é o obelisco italiano
no Parque do Ibirapuera, aqui em São
Paulo, ou se são os movimentos de música
popular, negra e nordestina nas insondáveis
periferias paulistanas. O obelisco como que
nos chama para a Europa, a viver de costas para
a América Latina, a buscar a saída
pelo aeroporto. Afinal, neste ano de 2007, a
maior crise para a classe média paulistana
justamente foi a crise do aeroporto, porque
é por ele que se acha a saída,
a saída de São Paulo, e, em especial,
a saída do Brasil para a Europa. Pois,
afinal, aqui só se vive provisoriamente,
até que se possa voltar à Europa
ou aprofundar-se na cultura de Miami. Aqui não
se é, só se é na perspectiva
do aeroporto! Na hora que os aeroportos entram
em crise, os ricos daqui não suportam
o aparente sufoco ao qual são submetidos.
Precisam da certeza de saída, de aeroporto.
Sim, este nosso país e povo são
complexos. Sua teologia é complexa.
1 – É
o fim da Teologia da Libertação?!
Sua
morte está anunciada desde a queda do
muro de Berlim, em 1989. Desde então
já não faria sentido, porque suas
teorias teriam sido marxista, e teriam sido
superadas pela queda do muro.
Estive
na DDR, na assim chamada Alemanha comunista
(República Democrática Alemã),
em 1987, no 2º semestre. Passei por todo
país. Falei com pessoas de todo tipo,
gente do governo de então, e, em especial,
estive com comunidades cristãs.
As
críticas que me eram feitas provinham
de dois lados. As pessoas das igrejas não
queriam saber de Teologia da Libertação
na América Latina, porque elas queriam
ver-se livres do estado. Numa dessas noites,
em Leipzig, estive em um prédio abandonado,
em algum quarto completamente fechado e vedado,
em uma reunião histórica para
mim. Era agosto de 1987. Juntos estavam jovens
da igreja, jovens do partido comunista da cidade,
e dissidentes russos do então partido
comunista oficial da União Soviética.
Naquela peça escura, passamos a noite
inteira em debate e em troca de opinião.
Aquele foi, para mim, um encontro impactante,
algo de contornos apocalípticos. Era
a DDR daqueles tempos! A tese dos visitantes
de Moscou era que não havia reais forças
democráticas que pudessem facilitar uma
transição verdadeiramente democrática
na sociedade russa e nas demais repúblicas
do leste. Concluía-se o mesmo para a
DDR. Na oportunidade, em nada, se vislumbrava
as igrejas na DDR em seu importante papel na
transição democrática.
Ela não merecia ser analisada em suas
funções, nem mesmo por quem dela
participava. - Na mesma visita à DDR,
tive a chance de me reunir, também de
modo informal e de maneira meio ‘clandestina’,
com dirigentes do partido comunista da DDR.
Um dos participantes era o ideólogo e
chefe do partido em Dresden, gente de dentro
do poder, de sua escala mais alta. Pois, nos
diálogos que tivemos no apartamento de
uma senhora de bastante idade que merecia confiança
de comunistas e de cristãos, não
houve acordo nenhum. Para a liderança
comunista, as igrejas não levavam chance
alguma na constituição e no tecido
social, nem na DDR e nem na América Latina.
Segundo “eles”, crer em Deus era
atrapalhar a vida, era idêntico a confundir-se
sobre a realidade própria da existência.
Enfim, separamo-nos em profundo desacordo com
a chefia ideológica do partido na DDR.
– Sabemos dos acontecimentos do segundo
semestre de 1989, e do relevante papel que igrejas,
pastoras e pastores e comunidades tiveram no
encaminhamento dos destinos da DDR. Daí
tomo a liberdade de deduzir que igrejas têm,
às vezes, grande relevância nos
encaminhamentos da vida e nos próprios
processos sociais, mais importantes que tendemos
a considerar-nos. É bom termos consciência
disso. O que se faz nas igrejas é de
grande relevância para os processos sociais.
Por isso, justamente a pergunta pela Teologia
da Libertação tem a importância
que tem.
De
todo modo, há que considerar que a Teologia
da Libertação não é
propriamente parte dos caminhos ocidentais,
das culturas euro-centradas. Ela é também
isso. É filha do ocidente. Basta ler
Gustavo Gutiérrez e suas intermináveis
citações da teologia da cultura
européia, para saber que a Teologia da
Libertação mantém profundos
vínculos com a cultura européia.
Mas, isso não é tudo. Esta teologia
libertária está ancorada nas raízes
latino-americanas, em suas culturas e suas nações.
Quando cristãos desvendaram para si o
sentido da Americana Latina, quando o fizeram
na própria América Latina, acabaram
tendo que fazê-lo em língua estranha,
mediante citações infindáveis
da bibliografia européia. Para começar
a comprometer-se com a América Latina
as igrejas daqui tiveram que recorrer a seu
berço, à Europa, para poder dizer
de seu comprometimento com a América
Latina. Este é o sentido cultural do
livro de Gustavo Gutiérrez sobre a Teologia
da Libertação. Afinal, naqueles
anos dos sessenta, Gustavo Gutiérrez
era assessor de jovens acadêmicos, era
assessor teológico do movimento estudantil
universitário. E para dizer em termos
universitários a latino-americanos que
os pobres eram o tema de nosso continente, teve
que ‘expressá-lo’, por assim
dizer, em ‘francês’, para
que as pessoas intelectualizadas daqui entendessem
que o assunto era sério. Isso que estou
dizendo é uma profunda contradição,
mas é esta a contradição
que vivemos: nosso pensar sendo daqui é
aqui estrangeiro. Se ele (o pensar) fosse daqui
teria que amar portugueses, índios e
negros. E isso é bonito ao se estudar
messianismo. samba ou culinária brasileira,
mas não para pensar. Afinal, ‘em
nós’ o ato de pensar faz-se um
ato estrangeiro. A Teologia da Libertação
tenta alocar nossa ética em meio a nossos
povos mediante o uso da linguagem estrangeira.
É, ao menos, o que podemos dizer para
os começos da Teologia da Libertação.
A partir do final dos anos setenta, novos ares
se impõem, os do verdadeiramente extraordinário
livro de Gustavo Gutiérrez A força
histórica dos pobres, e os dos decisivos
escritos de Leonardo Boff Igreja – Carisma
e Poder. Estes livros já respiram os
ares locais, cada vez mais e com maior intensidade.
Portanto,
a Teologia da Libertação se encontra
na tensão entre feijão e sonho.
(Este é o título de um romance
maravilhoso, escrito por um dos membros da família
presbiteriana dos Lessa.) Por um lado, a Teologia
da Libertação acertou o “feijão”,
a vida real e cotidiana dos pobres que, a cada
dia, têm seu gosto principal pelo feijão,
aquilo que alimenta para trabalhar e viver.
Se falta feijão, falta tudo! E, por outro
lado, estamos no sonho, na libertação,
na saída desta miséria coletiva
das grandes maiorias latino-americanas. Somos
gente que busca a companhia de Dom Manoel, aquele
rei português que no século 15
desapareceu na luta dos portugueses contra os
mouros muçulmanos no norte da África
e por cuja volta triunfal e messiânica
espera toda nossa cultura. Eis, nosso sonho!
Sonhadores foram nossos lutadores destemidos,
como Antonio Conselheiro, como José Maria
(no Contestado catarinense), como Jacobina Maurer
dos ‘muckers’ do sul do Brasil.
Todos estes e seus grupos são andarilhos
pelo mundo novo, como o é nosso carnaval
e como o é nossa política, quando
ela se torna comovedora. Não votamos
em candidatos partidários, mas, em eleições,
tendemos ir em busca da era messiânica.
Estes não são os sonhos de nossas
elites. Seus sonhos são os aeroportos!
Os sonhos populares estão em Canudos.
Eis
nosso desencontro nacional. E, aí, a
Teologia da Libertação tomou partido
e optou. Nos anos sessenta e setenta, esta opção
era mais fácil de fazer que hoje. Naqueles
anos, a América Latina era possuída
por militares que destituíam os governos
eleitos por golpes de estado. Fecharam os canais
de expressão para todos, para os pobres
que jamais tiveram expressão política
decisiva em nosso continente, mas estranhamente
também fecharam os canais de expressão
para os filhos dos setores mais abastados da
sociedade. Quem fazia opinião, estudantes
e jornalistas, foram cerceados, presos e assassinados,
num país latino-americano mais que no
outro, mas foram eliminados em massa no Chile
e na Argentina. Os militares voltaram-se, pois,
contra seus próprios aliados normais,
os filhos de gente rica e/ou tradicional. Mas,
como militares perderam esta chance de conjunção
social. Por isso, a “opção
preferencial pelos pobres” tornou-se tão
facilmente inteligível. Não havia
saída que não fosse pelas sacristias,
pelas igrejas. Ao tentarem impor a repressão,
os militares ajudaram a constituir um adversário
ainda mais poderoso, o que se forjou entre intelectuais
e pobres, através das igrejas. Lógico,
as igrejas queriam este novo acordo. Já
não queriam um acordo com as elites,
depois do Vaticano II e dentro de seu clima.
Queriam um acordo com o povo latino-americano,
com os pobres, em Medellín e depois desta
Conferência, até hoje, como se
vê nos documentos de Aparecida, em maio
do presente ano. O episcopado católico
ainda não encerrou o ciclo de seu enlace
com os setores pobres das sociedades latino-americanas.
Portanto, a Teologia da Libertação
continua em pleno vigor, em renovação,
em novas versões, apesar de tudo, apesar
das recentes perseguições vaticanas
contra Juan Sobrino. Ora, a opção
pelos pobres já é parte da identidade
católica, mas também é
parte de sua necessidade, pois sem amor aos
pobres estes já não terão
amor pela igreja católica. É que
hoje se apresentam novas opções
que buscam e necessitam da adesão dos
pobres, dentre movimentos pentecostais. Por
mais que a opção pelos pobres
tiver sido idéia política nos
anos sessenta (e ter-se-ia que verificar que
a opção tem raízes só
em convicções políticas),
em todo caso, no presente momento, não
optar pelos pobres na América Latina
seria tolice, pois até a mídia
televisiva se vê obrigada a isso. (A Rede
Globo tem jornalistas que elaboram programas
a partir de pobres na América Latina
e na África.)
Enfim,
estamos longe do fim da Teologia da Libertação.
2 – Os meio
ricos e os pobres – um desafio na Teologia
da Libertação
Há
um novo fenômeno social que vai complicando
a Teologia da Libertação. Este
fator não era tão decisivo nos
anos sessenta e setenta, pelo contrário,
naquelas décadas ele se formatava de
outra maneira.
O
problema são os setores médios.
Acima já ressaltei que nos anos de berço
da Teologia da Libertação, nos
sessenta e nos setenta do século 20,
estes setores médios e inclusive ricos
também tiveram negados seus direitos
políticos, Latino América afora.
Os direitos junto aos pobres se tornaram hóspedes
dos direitos humanos. (Lembro aqui uma publicação
dos direitos humanos como direitos dos pobres
pela Arquidiocese de São Paulo.) A situação,
hoje, não é mais a mesma. Em dois
aspectos, por exemplo, surgiram mudanças
expressivas: por um lado, as sociedades latino-americanas
deixaram de ter regimes militares. Aliás,
os militares não têm bom conceito
aqui no Brasil, e nem relevância política.
Poucas vezes em nossa história nossa
sociedade foi tão hegemonicamente civil.
Temos crises - sim, significativas crises -
em nossas representações políticas.
No Brasil, cassamos um presidente eleito pelo
voto direto. E, tudo isso, foi e é obra
da sociedade civil. Por conseguinte, já
nem se pensa e nem se sonha que seria necessário
ir à igreja ou querer abrigar-se nela
para poder ser politicamente ativo. Nos anos
sessenta e setenta, esta era uma realidade de
muitos agentes de pastoral e de colaboradores
nas igrejas: não havia outro espaço
na sociedade. Hoje, isso não é
necessário. É verdade, no contexto
das igrejas continua a haver muito esforço
político, mas não porque não
houvesse outro espaço. Muito pelo contrário.
Os partidos e os sindicatos oferecem plenas
condições de nos expressarmos
através deles. Não há,
pois, necessidade de recorrer às igrejas.
Quem atua na igreja, seja como clérigo
seja como leigo, assim procede porque a igreja
respectiva lhe agrada, porque entende que a
fé está em íntima relação
com a justiça e o amor. A igreja se tornou,
pois, mais igrejeira. Isso pode tender a um
certo refluxo das tensões sociais como
assunto religioso. A política fez-se
mais leiga; não carece de igrejas e de
seus espaços. - Por outro lado, e aí
realmente houve profunda mudança, os
setores médios da sociedade se afastam
cada dia mais das intuições eclesiásticas
em apoiar governos populares. Os setores médios
querem a si mesmos, com muita convicção.
Após as eleições presidenciais,
há um ano atrás, tentei comentar
o resultado eleitoral, tão favorável
a Lula, na sala de aula, no último ano
de graduação de um curso de teologia;
os alunos eram majoritariamente adultos, profissionais
de várias áreas que haviam optado
pelo estudo da teologia para aprimorar sua dedicação
à sua respectiva igreja. Pois, na sala
de aula, comecei a comentar os resultados da
eleição que deram praticamente
70% dos votos a Lula. Mas não consegui
nem concluir meu comentário, pois, como
eu jamais havia experimentado em minha vida,
a meu comentário se opuseram vários
alunos e alunas com ímpeto, em tom de
protesto e indignação e até
com fúria, totalmente contrários
ao resultado das eleições, pois,
assim diziam, “este Lula só dá
dinheiro aos pobres”, e nós, classe
média, temos que trabalhar, etc. e tal.
Tive duas horas de gritarias na sala de aula
de teologia, de protesto feroz contra o governo
popular de Lula. Para mim, um susto! Não
imaginava ter que ouvir tais ‘argumentos’
- aliás, gritarias - de teólogas
e teólogos. Obviamente já não
estamos nos anos sessenta ou setenta. Os tempos
são outros.
Há
que acrescentar a isso que nos países
latino-americanos os governos populares se impõem,
por toda parte. Não estamos em governanças
militares, mas em meio aos mais populares governos
que já existiram na América Latina.
Parcelas significativas dos orçamentos
nacionais são aplicadas para pobres a
ponto de já ser significativa a melhora
das condições da população.
É verdade, ainda falta muito, mas também
é verdade que cada qual vai tendo experiências
com governantes que aderem às necessidades
das maiorias empobrecidas, algo jamais visto
entre nós. No Brasil, os novos valores
do salário mínimo são decisivos;
seu valor ainda não é suficiente,
mas subimos de U$ 60 para U$ 240, em poucos
anos. Além disso, entrementes 20 bilhões
de reais são investidos em alimento para
os mais pobres, através de entrega de
dinheiro (não através de programas
de alimentação!)! Este tipo de
‘devoção’ do estado
aos mais pobres é um fenômeno encantador.
Certamente facilita a que oremos o Pai Nosso:
“o pão nosso de cada dia dá-nos,
hoje”. A universalização
deste pão é uma meta tangível,
em nossas terras. Não podemos deixar
de ler esta realidade de modo teológico,
ainda que muito teólogo tenha lá
suas dificuldades em avaliar positivamente por
medo de que lhe poderia vir a faltar o alimento,
se os pobres consumirem demais, como um desses
teólogos da ignorância me dizia
na sala de aula.
O
testemunho em prol da Teologia da Libertação
tornou-se, pois, menos óbvio, menos universal,
não menos importante ou menos urgente.
Pois, há mudanças para melhor
na América Latina, mas isso poderia ser
só um momento, uma transição.
Há esperança concreta, mas e amanhã...
3 – Destruímos
nosso futuro
O
movimento modernista, no Brasil expresso principalmente
pelas artes plásticas e pela literatura,
dizia, nos anos 20 do século 20, que
somos autofágicos. Penso que nisso há
razão de ser. Tendemos a devorar nosso
próprio futuro, nossas esperanças.
Pois, há entre nós, entre os setores
médios da sociedade, a suspeita de que
amanhã já não poderíamos
suportar viver por aqui. Arriscamos começar
com novos empreendimentos, mas dificilmente
os sustentamos. Ou, em outros termos, devoramos
nossas esperanças, deixamo-las cair no
vazio.
É
que nossa história não tem continuidade,
ou, ao menos, tende a não ter continuidade.
Ela se esgota em fatias. Partes de nossa história
são interessantes, mas outras, em seguida,
são podres. É como se comesses
uma laranja, e um de seus gomos estivesse estragado/pobre
e outro gomo, ao lado, estivesse, maravilhosamente,
doce, e assim em seqüência: um gomo
bom outro podre. O que nos falta em nossa história
é a continuidade. Pois, constantemente,
somos reflexo da história européia
e estado-unidense. Somos anexo à história
de outros. Somos um vagão em trem alheio.
Somos pátio dos fundos, quintal detrás
de casas bonitas. No quintal, nos pátios
fica jogado o que não se quer na casa.
Somos mais ou menos desse jeito.
Neste
pátio dos fundos, há coisa interessante,
mas não decisiva. É nossa beleza
e nossa tragédia. Somos lindos no futebol,
mas não conseguimos sair da miséria
em termos econômicos, ao menos nestes
500 anos que passaram. Mas, nesta história
passada, tivemos momentos muito bonitos, muito
libertadores, muito fascinantes. Mas tudo foram
pedaços, parcelas, nada inteiro e contínuo.
Nossos avanços não são
proporcionais a nós, mas nos são
inversamente proporcionais.
Este
é nosso ‘destino’, é
nossa sina, como dizem nossas poesias. Mas justamente
esta sina é a ruína continuada.
Há como encontrar uma saída destra
tragédia que se chama de dependência
interminável? Estes últimos 500
anos deram razão ao marxismo: não
houve saída; todos fomos mantidos nos
quintais, nos pátios dos fundos na ignorância
e pobreza. Mas a história é aberta
para o novo. O novo seria o de agora? Pois,
é possível! Dentro do horizonte
de minha vida diria que sim: já não
haverá como recuar. Mas, não sei,
prefiro também esperar para ver e, em
especial, participar junto com outras pessoas
de movimentos que impeçam que voltemos
para trás.
Enfim,
a tragédia de Sísifo chegará
ao fim!?
4 – Por
onde estamos, ‘carregando as pedras’?
Podem
ser anotadas algumas características
dos dias atuais. E elas apontam em direção
à inovação da Teologia
da Libertação bem como para a
sua continuidade. É óbvio que,
hoje, trinta anos após o livro de Gustavo
Gutiérrez temos que falar deste jeito
do movimento em questão, porque, depois
de trinta anos todo movimento necessita de uma
ou mais inovações.
4.1
– O protestantismo
O
protestantismo continua minoria. Mas, a cada
dia que passa, seus quadros aumentam, suas igrejas
crescem, seu debate interno se qualifica. Por
isso, faz-se necessário perguntar por
sua presença no presente e no futuro,
dentro deste quadro de formação
da teologia latino-americana.
E
aí me lembro da Teologia da Revolução,
deste conceito marcado por Richard Shaull, nos
anos cinqüenta e sessenta, em espaços
protestantes. E, até hoje, este movimento
não está encerrado e nem esquecido.
Entrementes, conheço diversos teólogos
e teólogas protestantes que recorrem
ao acervo de linguagem e análise da Teologia
da Revolução. A publicação
De dentro do furacão, com ensaios de
Richard Shaull, continua a receber bons ecos.
Os
carismatismos por certo já se alastraram
pelos poros das igrejas protestantes. Mas as
convivências de uma teologia socialmente
crítica com certo tipo de carismatismo
são possíveis. Pois, este pode
ser reacionário, em termos políticos,
como haveria que constatar entre os republicanos
norte-americanos. Mas, verdade seja dita, Jacobina
Maurer, Antonio Conselheiro e, não por
último, Thomas Münzer têm
o carismatismo como base comum. Situaram-no
dentro da história com vigor, força
e luta. Por isso, não há que ser
ingênuo e pensar que a teologia política
tende a ser um desdobramento da teologia liberal;
não, ela também é um desdobramento
do vigor do Espírito, assim já
o dizia o pesquisador do pentecostalismo chileno
dos anos cinqüenta e sessenta (Lalive).
Não
poderia encerrar um item sobre a questão
protestante como tema da Teologia da Libertação
sem lembrar que o livro decisivo de Leonardo
Boff foi exatamente intitulado Carisma e poder.
Nossos tempos, são, nas igrejas, de carismas.
Pelo poder as igrejas pouco são. Carisma
é tema comum, ecumênico. É
o assunto das comunidades.
4.2
– As comunidades
A
dificuldade principal de uma ampliação
da Teologia da Libertação em meio
ao protestantismo justamente reside em sua dificuldade
de ser movimento de comunidades. As igrejas
protestantes querem ser comunidade, sem que
informalizem sua compreensão de dons.
Sem dons não haverá mudança.
Este é o impasse maior. Em não
havendo ‘grupos-tarefa’, organização
social dos dons não haverá igreja
profética, nem comunidade que vai tomando
iniciativas por sua conta. O mundo protestante
é pastoral. Pastor ou pastora cuidam
de tudo, têm que saber de tudo, senão
a comunidade não se satisfaz. Na medida
em que existirem comunidades dispostas a tomarem
suas iniciativas autônomas na sociedade,
nesta mesma medida crescerá a profecia
e o movimento comunitário dentro da comunidade
(veja que contradição!). Por isso,
há sérios limites nas igrejas
protestantes; elas têm dificuldades de
lidar com a autonomia de seu povo. Seus pastores
são maravilhosos, mas tendem a ser também
seus túmulos.
No
geral, o que são os dons? Ora, são
tarefas e empreendimentos internos à
comunidade. Mas dom é o amor. A rigor
não são tarefas. Em especial,
não são exclusivamente tarefas
intra-comunitárias. São mesmo
amor, ações em favor de necessitadas
e necessitados.
Quanto
às comunidades, nada mudou no mundo católico.
Ela continua a ser uma igreja sem clero! Mas
não lhe faltam comunidades, grupos e
círculos. Ora, sem movimento de comunidades
não há a rigor Teologia da Libertação,
ao menos não depois de aproximadamente
1978. Nos inícios, a Teologia da Libertação
ainda não era, em seu todo, fruto de
encontros de comunidades, mas depois de seus
primeiros desdobramentos ela se fixou, se agarrou,
se mesclou à realidade comunitária.
Assim o descreve Gustavo Gutiérrez em
seu A força história dos pobres,
assim o encontramos em Massas e minorias. Assim
o celebram os cânticos cantados. A pergunta
decisiva não é, pois, se a Teologia
da Libertação continua, mas se
as comunidades continuam. A televisão
pode ‘substituir’ o acesso das igrejas
às pessoas, mas não como isso
se dá no âmbito da comunidade.
Nem mesmo cânticos animados, ou palmas
de entusiasmo podem efetivar entre as pessoas
o que suas próprias palavras podem alcançar.
É verdade, o carismatismo é participativo,
mas só mais ou menos. Pois, palmas e
saltos e movimentos são muito interessantes,
mas na falta da palavra a consciência
não cresce. Só tende a imitar.
Por isso, o movimento das comunidades continua
a ser o espaço de evangelização
próprio, específico, decisivo.
É
que a comunidade constitui espaço da
ação. Se faltar ação,
falta o que é propriamente típico
da igreja. Os encontros de igreja carecem justamente
do espaço da ação. Você
vai à igreja para a ela voltar. Mas o
que ela propõe que aconteça? Esta
questão as igrejas não vão
solucionar, porque elas não são
encontros para a ação, senão
reuniões que nelas mesmas se esgotam.
Contudo, fé sem ação expressa
morte! O que a era constantiniana fez da fé
em Jesus certamente cabe em templos; mas o que
Jesus quis nem mesmo necessita de templos!
Por
isso os sacramentos tendem a perder a forma
que têm. Tornaram-se atos sem ações;
neles mesmos viraram contradição.
O batismo é, sem dúvida, testemunho
precioso em relação à defesa
das crianças, mas sem ação
deixam de ser luta por crianças e por
adultos e se tornam ‘sacramento’.
Mas sacramento sem ação em nada
contribui na identidade cristã. Torna-se
hóstia. Pão que vira hóstia
tende a perder a conexão com as lutas
da vida. Pois, hóstia deseja ser parte
do “pão nosso de cada dia”.
E este pão nosso é eminentemente
social. Pressupõe lutas sociais. Ora,
igrejas dificilmente vão à luta.
Quem vai à luta são comunidades.
São quem vai eucaristicamente ou de modo
batismal à luta pelos sinais de Deus
na vida. Sem comunidade – a fé
em Jesus não tem saída.
Neste
sentido, a Teologia da Libertação
está longe de se concluir.
4.3
– A Bíblia
Pouco
há de novo na academia teológica
quando se trata de Bíblia. Ouço
muitas frases comuns pelos corredores, provenientes
das salas acadêmicas. Pois, ao lidar-se
com a Bíblia a tendência continua
a de torná-la ao máximo complicada.
Não me parece que o estudo da teologia
tenha conseguido inovar de tal forma no uso
da Bíblia que o que se estuda realmente
esteja a serviço das lutas do povo latino-americano.
A Bíblia em estudo continua estrangeira
ao solo daqui. Vem empacotada com cordas e correntes
da invasão conquistadora sem haver tocado
suficientemente o chão e o pó
daqui.
Há
exceções, é verdade. Mas,
no geral, de acordo aos livros traduzidos, estuda-se
aqui o que é europeu. Pior, estuda-se
aqui o que até na Europa já está
superado. Vale neste sentido: estamos no fundo
do terreno, onde se joga o lixo da casa. Reviramos
o lixo dos ‘senhores’. Estudamos
a sobra. Ora, nossa bibliografia bíblica
é, quase toda, ultrapassada; está
defasada por anos do que na Europa se estuda,
mas desejamos que a Europa continue nosso padrão.
Nem
sempre é assim, mas se passares pelas
faculdades de teologia me dirás certamente
que no geral é assim. A Bíblia
das faculdades vai longe de vir a ser Bíblia
do povo sofrido latino-americano. Neste sentido,
o gesto de Ataualpa, ao lançar fora a
Bíblia, aos pés de Pizarro, continua
a ser emblemático. Ou a Bíblia
traz as lutas da vida à consciência
ou ela é enfeite antiquado.
Há
iniciativas - lindas iniciativas - que trazem
a Bíblia ao meio da vida. Elas até
são muitas. Lógico, poderiam e
teriam que ser muito mais, mas alegremo-nos
pelo que já temos. As igrejas por aqui
suspeitam que a Bíblia não é
o que por aí dela se diz; ela é
mais radical em seu desejo de formatar a estas
mesmas igrejas. Esta suspeita se implantou entre
nós. Há que mantê-la no
ar, para que instigue as igrejas, dia a dia,
domingo após domingo. O evangelho, do
qual as igrejas falam, tem que ser o bíblico,
aliás as próprias igrejas desejam
que seja assim. Cabe a cada um e a cada uma
de nós reforçar esta crise, pois
o bíblico pede passagem.
Ora,
o que é bíblico pede por muitas
palavras de muitas pessoas. Não é
possível dizê-lo no singular, por
um bom pregador. Um bom pregador é um
bom pregador, mas lá por isso não
dá passagem - intensiva - ao que é
bíblico. Só o conjunto, os grupos
de comunidade é que são capazes
de expressar o sentido da Escritura.
O
movimento bíblico brasileiro e latino-americano
vem dando belos passos nesta direção.
Em parte isso se deve a seu caráter leigo.
Quanto mais leigo permanecer o movimento bíblico,
mais desafiador será. Em meio a este
povo leigo de biblistas, as mulheres vêm
tendo um papel todo especial. Isso igualmente
indica que a Bíblia assume contornos
em novos corpos. Sem isso, a Bíblia não
fala (veja 1Corintios 1!).
As
igrejas carecem, por aqui, de uma vigorosa renovação
bíblica. Penso que elas, em parte, estão
em meio a ela.
4.4
– A questão índia
Não
há teologia latino-americana que não
seja índia e negra. Por isso, sua dimensão
acadêmica não basta, porque a academia
representa um corte, um perfil branco na sociedade
e do saber. Às vezes tal perfil é
parte de nossa própria história
e temos que conviver com ele, porque assim fomos
feitos e assim somos. O acesso à escola
teológica chegou a estar negado aos descendentes
de escravos. E, mesmo quando liberado, o acesso
às faculdades, são poucos os descendentes
de nações indígenas e de
filhas e filhos dos povos negros que têm
acesso à formação teológica.
Temos muito a caminhar nestes caminhos. A Teologia
da Libertação tal como a conhecemos
desde os anos sessenta e setenta é, tão
somente, um primeiro momento do despertar latino-americano.
Ao delinear a contribuição indígena,
Gustavo Gutiérrez certamente foi claramente
insuficiente. E a contribuição
negra ainda nem de longe começou a se
extravasar pela Teologia da Libertação.
Ainda
estamos nos começos de caminhos que havemos
de trilhar, caminhos difíceis. Difíceis
porque não se trata somente de uma ou
de outra orientação teológica,
mas de um diálogo muito mais profundo.
Afinal, índias e índios, negras
e negros ainda não foram ouvidos em suas
experiências religiosas. E sem estas experiências
religiosas não haverá Teologia
da Libertação na América
Latina. Estamos tão somente nos começos
destes caminhos.
Estes
caminhos ainda não foram conscientemente
encaminhados. São tarefas que temos pela
frente, em longos e tranqüilos diálogos.
No nível da prática e de certa
dose de ‘inconsciência’, estão
funcionando há tempos. Mas, na esfera
do diálogo ainda estão por serem
realizados.
4.5
– Ecumenismo
Enfim,
o que temos pela frente é o ecumenismo.
A Teologia da Libertação não
começou anti-ecumênica. É
verdade. Mas também não teve inícios
marcadamente ecumênicos. Nos caminhos,
sua ecumenicidade cresceu. Ampliou-se e se vai
tornando uma de suas marcas.
Vem-se
fazendo, por aí, uma diferença
marcante entre ecumenismo e macro-ecumenismo.
O ecumenismo, aquele que geralmente é
endossado, é o ecumenismo entre igrejas.
O assim chamado macro-ecumenismo tende a ser
inscrito em outros contornos. Pois, diz-se que
o macro-ecumenismo teria outras premissas. Pois,
sabes, formalmente falando, até se poderia
manter esta diferenciação. Mas
ele de pouco ajuda. Na América Latina,
nem mesmo aborda as questões decisivas.
Pois, é o assim chamado ‘macro-ecumenismo’
que aborda o que importa: o lugar de cosmovisões
indígenas e afro-americanas em nosso
horizonte teológico. E, afinal, ecumenismo
entre cristãos é algo, se me permitem,
de tal modo óbvio que não carece
de grandes debates. Pior, este ecumenismo inter-cristão
mantém de fora aquele que propriamente
é o problema. Ora, cristãos e
cristianismo foram, por aqui, partes da opressão,
por séculos. Não basta, pois,
que nos reunamos para acertar-nos, se sempre
estivemos acertados, em nosso continente contra
índias, índios, negras e negros.
Aliás, continuamos a ter esta marca principal:
cristãos são os que esquecem e
ignoram seus parceiros de caminho, aqueles e
aquelas que, por nós, foram lançados
nas sarjetas e vão sendo perseguidos
até hoje, praticantes das religiões
indígenas e africanas. Nosso tema latino-americano
é o do assim chamado ‘macro-ecumenismo’,
por isso designo a este preferencialmente de
ecumenismo.
A
rigor, a fé em Jesus, nas tradições
de Moisés e dos profetas, haveria que
ser libertária. Haveria que ser... Pois,
senão deixa de ser o que é, o
que foi, o testemunho das ações
de Deus em prol de um pobre camponês executado
na cruz e de hebreus escravos e escravas, perseguidos
pelo senhorio faraônico. Pois, justamente,
esta religião formatada em contornos
tão claramente de libertação,
a que deu origem à Teologia da Libertação,
mostrou-se nos processos históricos de
nosso continente vorazmente opressora. E as
religiões indígenas e africanas
assumiram importantes contornos libertários
e integradores. Há séculos isso
vem sendo identificado desse modo. Pero Vaz
de Caminha chega a desrecomendar que o imperador
português envie missionários para
cá, para as terras em ‘descobrimento’,
porque as pessoas que aqui viviam, segundo Pero
Vaz, já eram cristãs, inclusive
haviam participado com cantorias na primeira
missa. Pero Vaz já intuía que
nada de bom se passar com os indígenas
através das missões e da presença
portuguesa (e espanhola). Afinal, o 16º
século foi de um voraz genocídio
contra índias e índios. Em todo
caso, em relação a negros e índios
não há que ter postura de ensino
mas de aprendizagem. Não há que
missionar, mas modestamente perguntar: com foi
que vocês conseguiram suportar genocídio
e escravidão em suas orações
e com seu Deus? O respeito a negras e índios
será, em nosso contexto, propriamente
a Teologia da Libertação. Bem
que Juan Luis Segundo já vislumbrava
que Teologia da Libertação haveria
quer ser libertação da teologia!
“El
Diós de ellos es el oro!” Assim
se dizia no Peru sobre conquistadores e sua
religião. Desde Constantino é
assim. Os mosteiros já o diziam, no oriente
e no ocidente. Aqui os ‘mosteiros’
daqueles primeiros séculos de acomodação
crista aos do império são negras
e índias, negros e índios. Temo
que ainda nem começamos a trabalhar este
assunto, nas igrejas.
Certamente, temos mais outros assuntos pela
frente. Neste meu item quatro restrinjo-me a
estes cinco temas exemplares. Outros enfoques
que se fazem necessários talvez poderiam
ser medidos e desdobrados no horizonte daquilo
que ficou refletido nos assuntos explicitados.
Desejo,
Guilherme, que vocês tenham muita alegria
em seus estudos. E obrigado que vocês
se dedicam a coisas nossas, de nosso contexto.
Permaneço à disposição.
Milton
Schwantes
rua Camilo José
Vila Dom Pedro I – Alto do Ipiranga
São Paulo/SP
04125-140
Brasil
milton.schwantes@metodista.br
tel. (55-11) 5068.0170
fax (55-11) 4366.5813
em 12-10-2007