1)
Em poucas palavras, como vocês definem
o novo livro de vocês?
O
leitmotiv do nosso livro está
bem claro na própria capa. Nela, há
a comunicação não-verbal
de Maria do Socorro Pereira de Melo. Seu desenho
é claramente dividido em duas partes.
De um lado, temos a fazenda com carro na porta,
empregado trabalhando e uma vaca pastando. Do
outro lado, o casebre do pobre, de taipa, e
um porquinho. Ela mesma resume: uns com
tanto e outros sem nada. Para nós,
representa o GRITO do povo, que atravessa toda
a história do povo brasileiro até
os dias de hoje, desde os índios, escravos,
meninos de rua, prisioneiros e camponeses, trabalhadores
da cidade e muitos outros.
Somos educadores. Não somos capazes de
resolver esse problema, mas chamados a dar a
contribuição educacional imprescindível
para que a justiça social e os direitos
humanos sejam válidos para todos os cidadãos.
Assim, deve ser entendido o título do
livro: Trajetória de uma militância
educacional. A nossa vida de professores
foi e é a procura constante para atender
ao apelo, ao grito do povo.
2)
Quais as principais lições do
mestre Paulo Freire?
Nossa
trajetória de luta iniciou-se nos anos
sessenta, ouvindo, em Recife, as lições
do próprio Freire e sua equipe. Sua proposta
foi, sem dúvida, uma ruptura na educação
brasileira, antes de Freire e depois de Freire.
Muito se tem falado e escrito a seu respeito,
inclusive criticando-o, com ou sem razão.
Não podemos esquecer que ele trabalhou
sob a influência das idéias não
bem definidas da época: a ideologia do
nacionalismo desenvolvimentista e do socialismo
democrático cristão.
No entanto, a idéia mestra está
clara: ele levantou a bandeira de uma educação
conscientemente política a favor dos
oprimidos: educação como prática
da liberdade e uma pedagogia dos oprimidos.
Conseqüentemente, tem que ser uma educação
engajada, tem que ser um círculo
de cultura, onde todos participam em pé
de igualdade e procuram uma resposta aos problemas
reais e vivenciais dos participantes.
Neste sentido, educação que segue
a proposta freireana é, necessariamente,
confronto. Lamentavelmente, nas práticas,
que se dizem freireanas, raramente encontramos
esta disposição de luta, de militância.
E, em outros casos, Freire virou apenas um mito!
3) Quais os principais
avanços do letramento sócio-histórico
em relação à proposta de
alfabetização desenvolvida por
Paulo Freire?
Ao
enveredar pelos caminhos da concepção
do letramento sócio-histórico,
seguimos os conselhos do próprio Freire
que, em comparação com muitos
outros, era consciente e lúcido ao ponto
de alertar no livro Ação Cultural
para a Libertação, 1976:17 que:
Quanto
aos outros, os que põem em prática
a minha prática, que se esforcem por
recriá-la, repensando também meu
pensamento. E ao fazê-lo, que tenham em
mente que nenhuma prática educativa se
dá no ar, mas num contexto, histórico,
social, cultural, econômico, político,
não necessariamente idêntico a
outro contexto.
Nos
anos oitenta, o contexto brasileiro era totalmente
diferente. Saímos de uma ditadura para
entrar numa outra, talvez pior, pois não
dava nem sequer esperança para mudança:
a ditadura do pensamento único neoliberal.
Foi este novo contexto concreto, histórico,
cultural, econômico e político,
que nos impôs repensar e recriar o pensamento
freireano. A nossa tomada de posição
estava clara: teria que ser uma educação
emancipatória e libertadora, capaz de
contribuir para a construção de
uma sociedade justa. A questão a resolver
seria revelá-la no ato educativo como
construção de conhecimento, já
que a base teórico-científica
e a concepção metodológica,
bem como seus procedimentos e métodos
pedagógicos, deveriam estar em função
do objetivo político a alcançar.
Foi a partir dessas considerações,
que enveredamos pela construção
de uma educação na perspectiva
sócio-histórica. Percorremos um
longo caminho, mesclando sempre estudo teórico
com atividade prática. Observamos que
esta visão dava plenamente conta: é
capaz de embasar uma educação,
como construção de conhecimentos
críticos em função de uma
tomada de posição diante de uns
com tanto e outros sem nada, o grito dos
atuais excluídos.
Posteriormente, enriquecemos com os novos conhecimentos
que surgiram no pensamento mundial e brasileiro,
notadamente, da psicologia sociocultural da
escola soviética e dos avanços
na análise de textos, conforme a filosofia
marxista da linguagem de Bakhtin. Foi assim,
que nasceu a concepção de educação
como letramento sócio-histórico.
4)
O que significa em dias atuais uma ação
pedagógica libertadora e emancipatória?
Com
a “adoção” do capitalismo
neoliberal, o contexto histórico, econômico
e político mudou radicalmente em relação
aos anos sessenta. Não se fala mais em
oprimidos, mas em excluídos e o que é
pior, joga-se a culpa neles mesmos, como disse
um ex-presidente, pois são “auto-excluídos”.
Com isto, a situação só
piorou e continua sendo, como disse um cortador
de cana: somos o bagaço da cana.
O que agrava ainda mais a situação
atual, conforme Paulo Arantes, Francisco de
Oliveira e Laymert Garcia dos Santos, em Folha
de São Paulo de 24 de julho deste ano,
é que o governo atual levou o movimento
social a uma eutanásia. Conquista amplo
apoio social e praticamente anula a possibilidade
de oposição, mas não leva
o país a lugar algum. Desta maneira,
mais do que nunca, é tarefa específica
da educação a libertação
das pessoas humanas da opressão, da miséria
material, da ignorância e fé cega
(Stuurman).
Acrescenta-se ainda outro problema. Em quem
confiar? O socialismo, cristianismo, democratismo
e outros ismos fracassaram redondamente
e têm sua bandeira, todos eles, manchada
de muito sangue. A luta deve ser em torno de
uma re-organização forte
e agressiva do povo, tendo como bandeira, a
justiça social e os direitos humanos:
organização de camponeses, das
mulheres, de afro-descendentes, índios,
comunidades de bairro, trabalhadores, professores
e assim por diante. E é aí que
a educação tem um papel fundamental,
não uma educação bancária
ou de reprodução, mas de emancipação,
que leva a enfrentar a situação
de uma maneira consciente e crítica.
5)
Quais os principais desafios para que o letramento
seja um processo exitoso no momento em que nossa
educação, como vocês mesmos
dizem, está no fundo do poço?
Que
a nossa educação está no
fundo do poço, não fomos nós
que inventamos. Praticamente toda semana, os
jornais do país publicam avaliações
– haja avaliação –
sobre a situação deplorável,
seja do ensino fundamental seja do ensino médio.
Geralmente, joga-se a culpa na falta de formação
do professor, embora a grande maioria seja “formada”
nas nossas universidades. Pergunta-se: são
formados para que, ou melhor, para quem? Numa
das últimas avaliações
entre professores que lemos, a culpa está
no aluno. Pergunta-se: professores ou alunos
são culpados ou vítimas?
Itan Pereira, professor e ex-secretário
de educação em Campina Grande/PB,
com quem tivemos a honra de poder trabalhar
no ensino fundamental, definiu a situação
assim: o nosso ensino é feijão
com arroz. E disse mais: não
adianta fazer um remendo aqui e acolá.
Necessário se faz uma mudança
radical. Para obter uma resposta a esta
questão estudou, profundamente, o Sistema
Paulo Freire, o método baseado em Piaget
e Emília Ferreiro e a concepção
de letramento na visão sócio-histórica.
Optou pela última pelo fato de se dirigir
diretamente à vida real e existencial
do aluno e oferecer um sistema pedagógico
coerente com objetivos bem definidos. Além
disso, procura criar uma rede pedagógica
municipal de ensino, em que todos participam,
secretaria, professores, técnicos, diretores,
pessoal de apoio, alunos e pais.
Não faltou entusiasmo dos dirigentes
e professores. No entanto, tratava-se de um
processo lento de mudança radical, como
o Secretário queria, mudança radical
de estrutura, de mentalidade, de atitudes e
comportamentos, em suma, de toda a cultura escolar.
Nas escolas, onde havia total adesão
do corpo docente, os desafios foram facilmente
vencidos. No fim, sempre surge um problema.
Mudança do governo, novo secretário
que declarou desde o início: todos
os métodos são válidos
e cada um por si!
6)
Qual a avaliação que vocês
fazem da EJA?
Restringimo-nos
à EJA que se ocupa com letramento inicial,
que é o nosso campo. Também, aqui,
não podemos generalizar. Sabemos que
muitas ONGs e Movimentos Sociais trabalham com
muita seriedade. Quanto às campanhas
oficiais do Governo, nelas a educação
de jovens e adultos sempre foi tratada como
primo pobre.
Queremos, no entanto, levantar uma questão
mais séria, que recentemente nos chocou
profundamente. No Correio da Paraíba
de 30 de março deste ano, a reportagem
de Fernando Ivo diz o seguinte: 80% dos
paraibanos têm alfabetismo funcional e
o número de pessoas com dificuldade de
identificar ou interpretar números, preços
ou horários, em um percentual de 93%
no Estado... O analfabeto funcional é
aquele que, mesmo sabendo ler e escrever, não
possui as habilidades de leitura, escrita e
cálculo necessárias para viabilizar
seu desenvolvimento pessoal e profissional.
A Paraíba está entre os três
estados nordestinos com este resultado. Quanto
ao Brasil, de maneira geral, fala-se em 70%
da população nesta situação.
Quanto ao Brasil Alfabetizado, o presidente
Lula declarou que um total de cinco milhões
de brasileiros tinham se alfabetizado. Daqui
a pouco chegaremos a uma situação,
no mínimo, esdrúxula: todo o povo
brasileiro alfabetizado, isto é, tem
o saber-decifrar sem, no entanto, o saber-ler
e o mínimo de cálculo que viabilize
seu desenvolvimento pessoal e profissional.
Para que serve, então, este tipo de alfabetização?
Faz parte, apenas, da eutanásia? É,
apenas, para as estatísticas?
Está na hora de repensar toda educação
de jovens e adultos em função
do trabalho, a fim de que melhorem de vida.
Exemplifiquemos. Todos os nossos alunos estão
ligados, direta ou indiretamente, à agricultura
ou pecuária, trabalhando de acordo com
a tradição, de pai para filho.
Sentimos muito falta de um agrônomo e
veterinário para orientá-los profissionalmente.
Além disso, a aprendizagem das letras
e da matemática, dada concomitantemente,
começa a ter pleno sentido. Para que
primeiro alfabetizar, para depois... geralmente
nada? A melhor aula de matemática a que
assistimos foi a de um agrônomo para o
pessoal do MST, explicando o projeto de plantação
de inhame. Usou as quatro operações,
medidas e sistema monetário. Os alunos
vibravam.
7)
O que levou vocês a publicar o livro pela
Oikos em co-edição com a Editora
Universitária da UFPB?
Editora
Oikos – São Leopoldo/RS. A idéia
do livro nasceu, em 2004, em Porto Alegre, no
VI Fórum Nacional do ENEJA. Na assembléia
final, fomos pegos de surpresa com uma homenagem
em razão da nossa longa caminhada de
luta em favor de uma educação
emancipatória na área de Educação
de Jovens e Adultos. Foi nesta ocasião
que nos solicitaram para escrever e publicar
nossa trajetória como contribuição
na construção de uma educação
em vista aos excluídos no Brasil.
Mais tarde, Erny e Iria, dirigentes da Editora
Oikos em São Leopoldo, amigos e companheiros
de longa data, endossaram o pedido para escrevermos
a trajetória das nossas idéias.
O motivo de publicá-la por esta editora,
está evidente, não só pelos
laços de amizade, mas por se tratar de
uma editora engajada na luta por um Brasil mais
digno e justo.
Do outro lado, fizemos questão da co-edição
com a Editora Universitária da UFPB.
Esta, para nós, nunca foi só local
de trabalho, mas nossa casa. Foi nela, onde
crescemos com colegas e amigos, professores,
funcionários e estudantes, em conhecimento
e amadurecimento, numa luta constante por um
ensino de qualidade, em função
do povo brasileiro e, notadamente, paraibano.
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