Milton Schwantes - profeta da esperança
Profeta andarilho
De tantas tribos,
De tantos caminhos,
De veias abertas
Da América Afro-Latina...
(Iria Hauenstein)
Na terça, dia 28 de fevereiro, fui visitar o amigo Milton Schwantes na UTI do Hospital Santa Catarina, em São Paulo. Aí se encontrava, já há 84 dias, rodeado de carinho de sua família (a esposa Rose, as filhas Priscila, Raquel e Débora, seu sogro Anaor e sua sogra Marina), de médicos e enfermeiras.
Cheguei bem perto e disse-lhe meu nome e que tinha vindo visitá-lo. Que trazia um monte de abraços da minha família e dos amigos e amigas de São Leopoldo. Abriu os olhos e olhou-me fixamente, lágrimas começaram a descer pela face. Começou a abrir e fechar sua mão à minha frente. Dei-lhe a minha e assim ficamos por mais de 30 minutos, ora apertando mais forte, ora mais fraco, fazendo carinho. Ainda contei-lhe que o livro “Salmos da Vida a caminho da justiça” estava pronto para impressão. Fiquei com ele até tarde da noite. Na manhã seguinte voltei logo cedo para vê-lo novamente antes de despedir-me, quando estava bem mais calmo.
Na madrugada de quinta-feira, 01 de março, pouco depois de meu retorno, sua filha telefonou informando-nos de seu falecimento. Iria e eu, junto com Martin Dreher e Marie Krahn, fomos ao velório e enterro. Despedimo-nos do grande amigo. Tarefa difícil. Consolamos e fomos consolados. Encontramos dezenas de amigos/as e conhecidos.
A encomendação e sepultamento do Professor Pastor Dr. Dr.h.c. Milton Schwantes ocorreu na manhã de 2 de março de 2012, em ato presidido pelos Pastores Roberto Baptista e Hermann Wille, com início às 10 horas, no Cemitério da Paz, na cidade de São Paulo. Grande número de pessoas, provenientes de São Paulo, Guarulhos, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro estiveram presentes, representando comunidades luteranas, católico-romanas, metodistas e presbiterianas. No culto de despedida, entremeado pela leitura do Salmo predileto do Pastor Milton, o Salmo 121, por cânticos e a leitura de Isaías 55, 8-11, manifestaram-se representantes das diferentes denominações presentes, da ecúmena, das instituições em que Milton Schwantes atuou, familiares e amigos. Em todas as falas foi destacada a personalidade do teólogo falecido, sua simplicidade, sua profundidade e radicalidade na interpretação da Bíblia, seu amor em relação às pessoas simples e sofridas, o respeito que soube granjear no mundo intelectual, a contribuição que soube dar para o entendimento entre as confissões. A exemplo de Moisés pôde perceber Deus “pelas costas”, podendo, agora, vê-lo “face a face”. A exemplo de Ezequiel engoliu o “rolo“, ruminou-o e pôde experimentar que era “doce como o mel”, transmitindo essa doçura para, depois, experimentar, como Jó, o sofrimento do justo, na certeza da ressurreição.
Durante os últimos dias e, especialmente, desde seu enterro, estamos inquietos, em desassossego, sentindo um grande vazio. Pela cabeça e pelo coração passa um filme com muitas imagens de nosso convívio, marcado por muitos encontros e entreajuda.
Filho de Delfino e Eugênia Schwantes, Milton nasceu às 8h30min, em 26/04/1946, no Hospital N.S. do Rosário, em Tapera, então município de Carazinho. A família residia na localidade de Lagoa dos Três Cantos. É o irmão mais moço de Norberto, Arlindo e Édio. Perdeu seu pai com 5 anos de idade. Em seguida, veio com sua mãe, para Nova Petrópolis e, meio ano mais tarde, a São Leopoldo.
Fez o primário no Colégio Rio Branco. A seguir, estudou no IPT-Instituto Pré-Teológico, entre 1959 e 1965. Aplicado nos estudos, destacou-se também como bom desportista.
Participou da organização do GEIPT (Grêmio Estudantil), do qual também foi presidente. Organizou, com outros colegas, o Ratio Club, sociedade de estudantes para discutir temas gerais da vida política, filosófica e religiosa.
Em março de 1966 iniciava seus estudos na Faculdade de Teologia, concluindo-os em julho de 1970, sendo indicado para pós-graduação em Heidelberg/Alemanha. O tema de sua tese de doutorado foi “O direito dos Pobres”.
Retornou ao Brasil em agosto de 1974, sendo indicado pela IECLB como pastor em Cunha Porã/SC. Junto com os demais colegas do Distrito Uruguai, além de uma prática pastoral coerente com a causa dos pobres, engajou-se na série de publicações Cadernos do Povo. Em julho de 1978 veio a São Leopoldo, para ser professor de Antigo Testamento na Faculdade de Teologia (hoje EST).
Iria e eu conhecemos Milton no início dos anos 80. Era nosso professor. Aproximamo-nos com mais intensidade em 1984. Milton foi grande apoio nosso. Ele nos levou ao CECA-CEBI, onde viríamos a trabalhar por muitos anos. De lá em diante os contatos foram frequentes, semanais. Era professor na EST e morava na Vila Pinto/Esperança (na Fazenda São Borja), periferia de São Leopoldo. Era uma opção sua – opção pelos pobres! – não aceitando a residência oferecida aos professores na época. Era uma casa pequenina, de madeira, de onde se deslocava sempre de bicicleta, e mais tarde de motocicleta, à EST e aos demais lugares onde dava assessoria a cursos e encontros na cidade e arredores. Foi o grande apoiador da leitura popular da Bíblia. Foi um dos idealizadores, dos cursos de padres e pastores e do boletim Palavra Partilhada. Não raro vinha à nossa casa pedir ajuda para elaborar (rapidinho!) uma coluna bíblica, de domingo à noite para segunda de manhã. Passamos horas tomando chimarrão e conversando!
Em 1987 viria a encerrar suas atividades em São Leopoldo. Transferiu-se para Guarulhos/SP. Desejava conjugar trabalho pastoral em comunidade e atuar como professor, o que não lhe fora atendido em São Leopoldo. Em 1988 começava sua trajetória como professor de Bíblia na hoje Universidade Metodista de São Paulo.
Como escreve Martin Dreher, “a casa pastoral de Guarulhos não foi apenas residência do pastor e de sua esposa. Era porta de acesso ao Brasil para um sem-número de pessoas que, vindas dos mais diferentes rincões do planeta, queriam conhecer o trabalho de comunidades eclesiais de base, de cristãos que eram movidos pela certeza de que em Jesus se alcança a libertação e que Deus é um Deus que nos liberta de cativeiros sociais, políticos, econômicos e espirituais. Milton tornava-se não apenas embaixador de teologia luterana, mas embaixador de teologia da Igreja de Jesus Cristo que vivia em cativeiro”.
Muitas vezes insistiu conosco para ir trabalhar com ele em São Paulo. Dizia ele que o nosso futuro pulsava em São Paulo... resistimos a este convite por que nossos filhos eram pequenos. Não obstante, a distância não impediu que nossos contatos fossem intensos. Nos anos que se seguiram na realidade – mesmo à distância – nossa amizade se intensificou. Sempre que vinha para o sul passava os dias em nossa casa.
Após sua cirurgia (tumor benigno inutilizou sua hipófise, forçando-o a tomar doses consideráveis de medicamentos nos últimos dez anos), quando vinha a São Leopoldo, era conosco que gostava de ficar por causa do apoio de que precisava. Sempre que alguém da nossa família viajava a São Paulo ia à casa do Milton. Nossos filhos se afeiçoaram muito a ele, sua esposa e filhas. Na última viagem à Terra Santa que coordenou convidou nosso filho Miquéias – historiador – a viajar com o grupo.
Nas últimas vezes percebemos a sua obstinação em visitar sua terra natal, a rever amigos, os espaços onde sua mãe passou importantes momentos de sua vida. Ah! E como gostava de provar as delícias de sua infância: a cuca, a linguiça, os vários sabores de geleia, o pão de milho... sempre que podíamos levávamos uma porção para São Paulo.
Em maio de 2011, quando veio pela última vez para São Leopoldo, tivemos longas conversas. Apesar da sua fragilidade crescente continuava a sonhar com o futuro e listava tudo o que ainda queria fazer. Na última vez em que conversamos ao telefone, antes que fosse internado, disse que nos preparássemos que já tinha mais 5 livros em fase final para publicar pela Oikos!
Aliás, ele foi o grande incentivador da Editora Oikos e nosso orientador constante. Dizia que o grande desafio era “quebrar” a lógica do mercado editorial. Resultado da nossa parceria foi a venda de mais de 25 mil livros nos últimos 6 anos. Vendeu mais de 3 mil exemplares do seu livro “Haggai” – em idioma alemão – (Ageu) em sua última viagem à Europa, por incríveis 2 euros a unidade. No final de 2010 e início de 2011 vendeu 10 mil unidades do livro “Figuras e Coisas”. Outro livro seu vendeu 2 mil exemplares (esgotando a edição) em 10 meses. Conforme ele, nunca antes os seus escritos eram lidos por tanta gente. Nunca vendera tantos livros...
Perdemos um grande amigo, parceiro de todas as horas. Humilde, apreciador das coisas simples, sua característica principal era apostar nas pessoas, acreditar no seu potencial, investir no ser humano. Deixa um grande legado. Milhares de estudantes de graduação e pós-graduação tiveram o privilégio de conviver com ele. Seus escritos rodam o mundo. Muito haveremos de aprender ainda com ele!
Entre as dezenas de livros publicados, lançou pela Editora Oikos: História de Israel: local e origens, Sofrimento e Esperança no Exílio, Deus vê, Deus ouve – Gênesis 12-25, Breve História de Israel, Sentenças e Provérbios, Haggai, Da vocação à provocação: Isaías 1-12, Figuras e coisas – Meditações e ensaios para viver. O mais recente livro “Salmos da vida – a caminho da justiça” será lançado nas próximas semanas.
Erny Mugge - 04/03/2012
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